Blog do Matias http://matias.blogosfera.uol.com.br A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Fri, 29 Dec 2017 20:15:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 18 discos clássicos que fizeram aniversário em 2017 http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/29/18-discos-classicos-que-fizeram-aniversario-em-2017/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/29/18-discos-classicos-que-fizeram-aniversario-em-2017/#respond Fri, 29 Dec 2017 20:15:15 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4252

Quem acompanha este blog sabe que reservo um lugar especial para discos clássicos que comemoram aniversário redondos (a saber: 50 anos, 40 anos e 25 anos de idade, critérios arbitrários definidos por este que vos escreve) e neste fim de 2017 resolvi reunir os 18 discos que celebrei durante o ano em um único post, contemplando tanto obras cruciais do ano psicodélico de 1967, outros pilares do 1977 que viu o punk acontecer e duas obras que ajudaram o rap a amadurecer em 1992. Claro que é inevitável que alguns discos passassem batido e lamento a ausência de obras brasileiras (cujas datas precisas de lançamento são quase impossível de se descobrir), mas acho importante olhar para o passado para saber como é que chegamos até aqui. 2018 promete o aniversário de tantos outros clássicos – e quero ver se consigo incluir discos nacionais neste nada modesto panteão. O texto comemorativo original está no link do título de cada disco. Boa viagem.


David Bowie – Low (1977)
Gravado em sua maioria no Castelo de Hérouville, na França (onde Bowie havia gravado, em julho de 1973, o disco de versões Pin Ups e produzido o primeiro disco solo de Iggy Pop, The Idiot), e parte no Hansa Studio em Berlim, Low é um disco cujas raízes já podem ser encontradas em Station to Station. O disco do ano anterior funciona como um preâmbulo à trilogia Berlim e a paixão de Bowie pela sonoridade alemã daquele período – de grupos de rock progressivo tortos como Neu!, Can, Tangerine Dream e o essencialmente eletrônico Kraftwerk – já podia ser ouvida nas composições da fase Thin White Duke. É aquele tipo de som – sintético, metronômico, intenso e absorto que os alemães chamavam de Kosmiche Musik e os ingleses de krautrock – que faz Bowie escolher Berlim como sua visão de futuro – ou pelo menos de seu próprio futuro.


Television – Marquee Moon (1977)
E do moquifo que deu origem ao punk, do sovaco elétrico da boemia nova-iorquina, surgia um disco épico e heróico, mas ao mesmo tempo introspectivo e existencialista, que questionava não apenas o niilismo da cidade que viu aquele novo movimento cultural nascer mas também o próprio papel do rock nesta nova fase. Consciente de sua importância, Marquee Moon é o divisor de águas que encerra a fase clássica do rock e abre o novo testamento pós-punk, mas sem precisar tripudiar ou negar o passado. E mesmo assim segue à miúda, em segredo, quase como um código que vai sendo transferido de geração em geração.


The Velvet Underground and Nico (1967)
The Velvet Underground and Nico também é o disco cult em essência, aquele antissucesso comercial que ganhou fama e força com o passar dos anos. Mas, mais do que isso, é a obra que fez a cultura pop e a grande arte olharem uma para a outra com um estranhamento que tornou-se encanto, principalmente quando uma percebeu que pode tornar-se a outra, mudando assim o curso da cultura ocidental.


Beastie Boys – Check Your Head (1992)
Check Your Head é um parque de diversões de referências musicais, mas, principalmente, é um parque de diversões. Por ele os Beastie Boys perambulam despreocupados, andando de skate e voltando a tocar instrumentos (Ad-Rock na guitarra, MCA no baixo, Mike D na batera), acompanhados de perto de três seus novos compadres – o produtor brasileiro Mario Caldato, o DJ Hurricane e o tecladista nipo-mexicano Money Mark. Neste novo cenário, a banda começa a mergulhar em referências obscuras trazendo-as à tona em forma de canções que vão de raps diretos a jam sessions despreocupadas, colagens engraçadinhas e mensagens profundas. Tinham a favor o fato de ninguém estar nem aí para seu próximo disco.


Jimi Hendrix Experience – Are You Experienced? (1967)
Em frente a uma plateia progressista e sem preconceitos, o guitarrista explorava todos os limites de sua performance, assumindo o holofote como Linda Keith havia profetizado, não apenas como instrumentista, mas como showman, líder carismático no palco. Ele e sua guitarra Fender Stratocaster eram um só e ele ficava cada vez mais consciente e confiante de sua força artística, seja cuspindo frases de apresentação no começo de suas músicas ou narrativas melódicas completas nos intervalos entre os refrões. A guitarra também era a batuta com a qual regia a microfonia, o barulho dissonante dos instrumentos elétricos que Hendrix aos poucos domou. Hércules sonoro, desafiava bestas sonoras inomináveis e transformava estas lutas em solos memoráveis, deslumbrantes, transcendentais. Era uma força ancestral. O que Hendrix mostrava para os ingleses era a versão atual da geração de músicos norte-americanos que a Swinging London venerava. Uma geração que surgiu com o rock’n’roll de Elvis Presley, Chuck Berry, Buddy Holly e Little Richards, mas que logo foi atrás dos discos anteriores, dos primeiros bluesmen elétricos, dos discos da gravadora Chess. Hendrix era um daqueles monstros sagrados, só que não vivia no passado, mas no presente, apontando para o futuro.


Beatles – Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967)
A quantidade de trunfos de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club é imensurável. Sem ele, a cultura perderia o impacto global e os Beatles não seriam uma das principais forças artísticas do mundo até hoje. Seu cinquentenário vem apenas reforçar sua importância, tanto em termos criativos quanto mercadológicos. Nenhuma outra obra de arte foi tão influente e transgressora em tão pouco tempo – nem antes, nem depois.


Bob Marley & The Wailers – Exodus (1977)
Foi uma sacada de gênio, ao dividir o álbum entre política e amor, Bob Marley deixava claro que sua política era a do amor e que uma coisa era indistinguível da outra, mesmo separando-as cada uma em um dos lados do disco. Uma visão que nasceu motivada por um atentado à sua vida, consolidada na capital do antigo império que havia colonizado a ilha em que havia nascido e envernizada com as cores do novíssimo movimento punk. Exodus é a obra-prima de Bob Marley – seu melhor e mais importante disco – e, em 1999, foi eleito pela revista Time como o melhor disco do século passado. Vamos acender as velas para parabenizar este disco por quatro décadas de eternidade musical – e saudar Bob Marley como um dos artistas mais importantes de nossa era. Tuff Gong, indeed.


Pink Floyd – The Piper at the Gates of Dawn (1967)
Talvez não tivessem os recursos que os Beatles tinham, mas isso não tornava suas viagens mais tímidas. Ia do espaço sideral (com a faixa de abertura “Astronomy Domine” e o longo improviso instrumental de “Interstellar Overdrive”) ao I Ching (“Chapter 24”), da visita de seres míticos (“The Gnome”) à infância (“Bike”), sempre ao som de progressões de acordes incomuns, solos melancólicos, riffs destrambelhados, fractais em teclados elétricos, bateria desenfreada, baixo melódico e duro, efeitos eletrônicos e sonoplastia. The Piper at the Gates of Dawn é quase um OVNI que pousa no meio daquilo que hoje conhecemos como rock clássico, acendendo luzes que apontam para rumos que nunca haviam sido cogitados.


Talking Heads – ’77 (1977)
Talking Heads: 77 é o registro de uma banda em ponto de bala, no exato momento em que ela deveria ter gravado seu primeiro disco. Se seu álbum de estreia fosse lançado no 1975 cogitado pela CBS talvez o grupo tivesse incorporado características – que depois se tornariam clichês – do punk na primeira hora. Parido dois anos depois, o debut dos Talking Heads assiste sua apresentação mais centrada, mais decidida e convicta, o que fez que ela se tornasse uma das grandes bandas daquele período e crescesse sua moral na década seguinte. Moral que permanece intacta, principalmente pelo fato de que eles são uma das únicas bandas – num recorte que inclui nomes pesados como os Beatles, os Sex Pistols e o Velvet Underground – que nunca voltaram a tocar juntos, salvo uma ou outra ocasião. Poderiam voltar a fazer turnês e ganhar rios de dinheiro, mas preferem explorar novos rumos individualmente, uma sabedoria estética assumida ainda nos tempos do punk rock.


David Bowie – “Heroes” (1977)
E por mais que Low tenha iniciado a relação de Bowie com Eno de forma avassaladora, a colaboração entre os dois foi selada de fato no disco seguinte, lançado no dia 14 de outubro de 1977. “Heroes” – entre aspas mesmo – não é tão importante quanto o disco anterior, mas é o álbum que consagra não apenas a nova fase da carreira do compositor como o eterniza como um dos principais nomes da música pop do século passado, forjando parâmetros que ajudaram a moldar o pop deste século. É o ponto de amadurecimento de um compositor seguro de si mas disposto a correr riscos e o disco que traga aquela que é considerada sua canção mais emblemática.


Sex Pistols – Never Mind the Bollocks (1977)
O primeiro disco dos Sex Pistols apresentava a banda para o mundo além dos factoides criados pela imprensa marrom inglesa e dos dois singles que a colocaram no mapa. É um disco sólido e conciso, uma carta de intensões bem clara e também uma obra de arte, como queria Malcolm McLaren, discípulo de Andy Warhol. Seu teor político é niilista, suas ambições estéticas são autodestrutivas, a mensagem era de que não havia futuro para nada. Mesmo que soando careta quase um século depois (são músicas criadas com acordes descendentes do blues e do country e que ajudaram a moldar um formato que tornou-se estanque com o passar dos anos – o próprio conceito de punk rock), Never Mind the Bollocks ainda soa forte e agressivo como em seus primeiros dias, o suficiente para não soar datado.


Cream – Disraeli Gears (1967)
Foi o disco que mostrou a toda uma geração de jovens músicos ingleses que a devoção para com a música norte-americana de décadas anteriores poderia ajudá-los a reinventar o próprio cenário musical contemporâneo sem ser saudosista e atingindo um público menos elitista e selecionado do que a panelinha que eles formavam.


Ramones – Rocket to Russia (1977)
Porque Rocket to Russia, ao contrário de Never Mind the Bollocks, não era um disco de ruptura, muito pelo contrário. É o disco em que os Ramones sublinham que sua sonoridade tosca e agressiva não era negação do som que haviam crescido ouvindo e sim uma forma de retomar valores essenciais do cânone clássico do rock’n’roll que haviam se perdendo entre sinfonias de rock progressivo, solos virtuosos de bandas de hard rock e baladas adocicadas cantaroladas por cantores-compositores. Ao mesmo tempo é o disco que melhor captura a dinâmica sonora do grupo, consagrando seu formato para a eternidade – e reúne um cardápio repleto de canções clássicas a ponto de rotineiramente ser confundido com uma coletânea de melhores músicas da banda.


Brian Eno – Before and After Science (1977)
Before and After Science é o disco que marca o fim de sua carreira como popstar e sela seu destino como tutor para bandas em ascensão, além de experimentalista conceitual. A partir deste disco, Brian Eno passa a usar sua discografia como exercícios de estética ao mesmo tempo em que auxiliava artistas como Devo, James, Slowdive, Laurie Anderson, Grace Jones, Coldplay e, principalmente, o U2 a explorar novos territórios musicais. É o produtor da coletânea de noise vanguarda No New York e gravou ao lado de nomes como John Cale, David Byrne, Robert Fripp, Cluster e Harold Budd, entre outros. É o álbum que demonstra para os anos 70 como seria a música pop do futuro ao mesmo tempo em que consolida sua reputação, tornando-o livre para fazer o que quiser sem precisar dar nenhuma satisfação – comercial ou não.


Wire – Pink Flag (1977)
Pink Flag sintetizava todo o espírito da banda de forma definitiva. Eram vinte e uma canções em pouco mais de meia hora de disco, com músicas que nem mesmo um minuto tinham, em alguns casos. Os temas eram muito mais diversos que os explorados pelo punk: a tensa “Reuters”, que abria o álbum, descrevia uma zona de conflito do ponto de vista de um correspondente de guerra; a urgência de “Start to Move”, “It’s So Obvious” e “12XU” contrastava com o ar contemplativo de canções sentimentais como “Fragile”, “Strange”, “Lowdown” e “Feeling Called Love”, questões políticas fugiam de discussões partidárias em faixas como “Mr. Suit”, “The Commercial”, “Brazil” e a faixa-título. Todas as canções pareciam pequenos manifestos modernistas e poderiam ter suas letras sido escritas no início do século 20, com frases de efeito que tinham origens futuristas, dadaístas, situacionistas e pós-modernistas. A novidade estética era a urgência dos sons e palavras, quase sempre indo além do que se esperava de um disco de punk rock.


Doors (1967)
As que ficaram são a matéria que compõe a lenda. O grupo emplacou três hits logo de saída: “Break On Through (To the Other Side)”, “Light My Fire” e “The End”, sendo que as duas últimas eram das jam sessions intermináveis que deram fama à banda. “Break on Through” abre o disco misturando o teclado grave de “What I’d Say” de Ray Charles com a levada de bossa nova, apresentando formidavelmente a banda. “Light My Fire”, a primeira canção composta por Krieger, teve de ter sua letra mudada em apresentações ao vivo para evitar problemas com a moral e os bons costumes norte-americanos, que não aceitavam que se cantasse sobre ficar chapado àquela época. E a épica “The End”, em que Jim Morrison encarnava o Édipo Rei para maldizer seus próprios pais, teve o verso “fuck” soterrado nas gravações.


Dr. Dre – The Chronic (1992)
O disco também sacramentou Dr. Dre como um dos principais nomes da indústria fonográfica, sendo cada vez mais requisitado para produzir novos artistas enquanto diminuía suas próprias produções. Desde este lançamento, Dr. Dre lançou apenas dois discos (2001, em 1999, e Compton, em 2015), mas lançou a carreira de vários artistas – especificamente Eminem e 50 Cent -, além de produzir discos e singles de Eve, G-Unit, Gwen Stefani, Mary J. Blige, Missy Elliott, Busta Rhymes e Alicia Keys. Lançou a grife de fones de ouvidos Beats by Dre em 2008, que foi comprada pela Apple em 2014, por três bilhões de dólares, tornando Dre executivo da empresa criada por Steve Jobs e o primeiro bilionário do rap.


Beatles – Magical Mystery Tour (1967)
Sozinho, Magical Mystery Tour é o que o filme original tentava ser: uma viagem psicodélica misteriosa, em que os Beatles, como mágicos, recebiam o ouvinte tentando emular a sensação lisérgica em letras e melodias – dos “roll up” que abrem a faixa-título ao clima nebuloso da hipnótica “Blue Jay Way” de George Harrison, da viagem instrumental de “Flying” (a primeira faixa assinada pelos quatro Beatles) ao delírio jocoso de “I Am the Walrus” (que Lennon compôs arbitrariamente de forma dúbia, apenas para atiçar a curiosidade dos que interpretavam demais suas letras), passando pela viagem à infância em Liverpool de “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane”, pelas baladas nostálgicas “The Fool on the Hill” e “Your Mother Should Know” e pelas letras simples, otimistas e diretas de “Hello Goodbye” e “All You Need is Love”. Um disco impecável que encerraria um ano mágico para os Beatles e os preparava para o início do fim de suas carreiras.

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Há 50 anos, Magical Mystery Tour encerrava o ano psicodélico dos Beatles http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/27/ha-50-anos-magical-mystery-tour-encerrava-o-ano-psicodelico-dos-beatles/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/27/ha-50-anos-magical-mystery-tour-encerrava-o-ano-psicodelico-dos-beatles/#respond Wed, 27 Dec 2017 20:24:27 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4244

Quando a versão LP de Magical Mystery Tour chegou às lojas norte-americanas há cinquenta anos, no dia 27 de dezembro de 1967, os Beatles encerravam com chave de ouro seu maravilhoso ano psicodélico bem como começavam a perder a mão do próprio negócio. Embora o disco fosse impecável – a ponto de rivalizar com o emblemático Sgt. Pepper’s como uma das principais obras da banda até então -, ele era fruto do primeiro projeto do grupo que foi mal recebido pela crítica (o telefilme que batizava o disco), bem como feria uma regra tácita que a banda se impôs desde seus primeiros anos, de não incluir as canções lançadas em compacto em seus álbuns.

Magical Mystery Tour foi um projeto liderado por Paul McCartney logo após a morte do empresário da banda, Brian Epstein, no fim de agosto daquele ano. Epstein havia sido a peça-chave que fez o grupo ir além do formato tradicional de banda de rock, transcendendo para fenômeno pop global sem precedentes. A súbita morte do empresário pegou a banda de surpresa logo após o lançamento de Sgt. Pepper’s e os deixou completamente sem rumo. Era Brian quem estudava todos os passos que a banda poderia dar, dividindo com John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr as opções de carreira e a partir das opiniões do grupo dar seus ousados passos profissionais. Foi ele quem vislumbrou a estética da banda, todo o conceito de merchandising, a forma como lidava com a imprensa, a conquista de mercados pelo planeta, a possibilidade de fazer filmes, capas e títulos de discos que falavam por si só. Dos grandes passos que os Beatles deram em termos de marketing pessoal, só alguns foram dados sem a iniciativa de Brian, como o abandono dos palcos em 1966 e a ideia de criar álbuns conceituais. Da mesma forma que o produtor George Martin era o quinto beatle quando o assunto era música, Epstein era o quinto beatle em relação a estratégia e rumos de carreira, guiando a banda para fronteiras que os quatro nem imaginavam.

Não por acaso sua morte foi um choque para a banda. Ele não chegava a ter o aspecto professoral que Martin tinha em relação ao grupo (por ser quinze anos mais velho que os dos Beatles mais velhos, John e Ringo) e tinha só seis anos a mais que os dois, aproximando-o ainda mais do grupo. Era um fã de música pop como os quatro Beatles e sua relação com o grupo era menos de empresário e mais de amizade. Os quatro confiavam cegamente em Brian – e aquela morte tirou completamente o senso de realidade do grupo na hora em que estavam surfando uma onda de plena criatividade artística. Isso está claro na entrevista que John e George deram logo após chegar do retiro com o guru Maharishi Mahesh Yogi, onde souberam da morte do amigo e empresário. Olha a expressão na cara dos dois:

Paul McCartney logo entendeu que aquela notícia poderia ter um impacto negativo o suficiente para deteriorar a banda e acelerar seu fim, algo que já vinha sendo cogitado desde que o grupo pendurou as chuteiras dos palcos, e assumiu as rédeas da banda. Como havia feito em Sgt. Pepper’s – quando concebeu o conceito por trás de um disco que seria uma obra única, mais do que uma coleção de canções -, logo cogitou a possibilidade de lançar um terceiro filme da banda, sua obra audiovisual psicodélica, que, por motivos de agilidade de produção, foi transformado em um filme feito para a TV, no caso a emissora britânica BBC, onde o grupo já batia ponto regularmente em seus programas radiofônicos.

Magical Mystery Tour foi um conceito criado a partir dos chamados “mystery tours”, viagens de charrete em que os ingleses eram convidados a passear sem saber o rumo daqueles passeios, quase sempre em direção ao campo, no início do século 20. Como, para os ingleses, toda a noção de psicodelia estava intrinsicamente ligada à volta à infância e uma viagem ao passado, era natural que aquele conceito fosse transformado em “mágico” para saciar as ansiedades lisérgicas de uma geração que via o mundo deixar de ser preto e branco para assumir cores em Technicolor.

O problema é que por mais empolgado que Paul estivesse com aquele conceito, ele era apenas um jovem de vinte e cinco anos que havia dominado o mundo da música e estava delirando com a possibilidade de se tornar um autor sério. Havia começado a frequentar galerias de arte, a acompanhar cinema de vanguarda e a ler sobre cultura erudita. Aquele ímpeto jovem de se tornar um artista intelectual era bonito na teoria, mas na prática ele não tinha muita ideia do que fazer. E embora o filme tivesse sido dirigido e escrito pelos quatro Beatles, era ele o capitão daquela aventura e o aspecto livre de execução do filme seria perfeitamente exemplificado pelo roteiro escrito por Paul – um diagrama circular que funcionaria como ponto de partida para improvisos excêntricos e delírios lisérgicos da banda.

O resultado foi um filme completamente experimental e caótico, que substituía as charretes das turnês misteriosas do passado por um ônibus escolar cheio de personalidades peculiares, todas elas vindas do inconsciente coletivo imaginado pela banda, ecoando também as viagens psicodélicas promovidas pelos Merry Pranksters de Ken Kesey pelos Estados Unidos, anos antes, quando aquele grupo atravessava o país dando ácido lisérgico diluído em ki-suco em festas instantâneas. Pelo percurso do filme, curtas musicais que anteviram o conceito de videoclipe e acenos humorísticos que plantariam a semente do que o Monty Python faria em seu Monty Python’s Flying Circus, dois anos depois. Steven Spielberg e George Lucas também celebraram o aspecto de vanguarda naïf do filme, que ajudaria os dois diretores a entender como ser experimental e pop simultaneamente.

Mas todas essas qualidades foram percebidas posteriormente. Quando foi exibido após o natal daquele ano, o filme sofreu fortes críticas, principalmente por sua falta de roteiro e aparente amadorismo. O produtor George Martin também atribui o fracasso do filme ao fato de este ser um filme muito colorido e, à época, boa parte dos televisores na Inglaterra transmitirem apenas em preto e branco. O baque sofrido pela banda foi tamanho que o próprio Paul McCartney deu uma declaração para a imprensa praticamente se desculpando por ter feito o filme.

Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e John Lennon

O mesmo não poderia ser dito em relação à sua trilha sonora. Lançada no início daquele dezembro como um EP, o disco continha apenas as músicas da banda que utilizadas no filme, todas inéditas. Era um compacto duplo que trazia a faixa-título e “Your Mother Should Know” no lado A, “I Am the Walrus” no lado B, “The Fool on the Hill” e a instrumental “Flying” no terceiro lado e “Blue Jay Way” de George Harrison no quarto. Como a capa de Sgt. Pepper’s, a do EP também era dupla e trazia um encarte de 28 páginas que tentava contar a história rascunhada no filme.

Mas quando o disco foi cogitado para o mercado norte-americano, ele sofreu uma grave distorção – principalmente do ponto de vista dos Beatles. Em vez de ser um compacto duplo, ele agora seria um álbum, e parte das músicas que o tornariam um disco cheio já haviam sido lançadas como compactos anteriormente, quebrando uma regra que os Beatles criaram logo após o lançamento de seu primeiro disco, o único a conter músicas lançadas também como single (a saber, “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, que faziam parte do repertório do disco Please Please Me). Desde então, o grupo separava as músicas que tinham maior potencial radiofônico para serem lançadas como compacto, deixando-as quase sempre de fora dos álbuns. Assim, hits instantâneos como “She Loves You”, “I Wanna Hold Your Hand”, “We Can Work It Out”, “Day Tripper”, “Paperback Writer” e “Rain”, entre outras, nunca chegaram a figurar na discografia de álbuns do grupo.

O disco Magical Mystery Tour, que chegou ao mercado norte-americano há 50 anos, incluía as faixas de compactos como “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” (compacto que havia sido lançado antes de Sgt. Pepper’s), “All You Need is Love” e “Baby You’re a Rich Man” (lançado após a primeira transmissão ao vivo da história, naquele mesmo ano) e “Hello Goodbye” e “I Am the Walrus”. A princípio o grupo ficou contrariado com esta nova versão, mas aos poucos cedeu às más impressões a ponto de oficializá-lo com item oficial quando a discografia da banda foi sacramentada em sua versão em CD, trinta anos depois. A inclusão daqueles compactos no antigo EP duplo também favorecia a transformação de todos os outros compactos na coletânea dupla Past Masters – Volume 1 & 2, que teria de ter um terceiro volume caso não os compactos de 1967 não fossem incluídos naquela edição.

Mas, principalmente, a nova edição coroaria 1967 como o ano psicodélico dos Beatles, reunindo toda a produção da banda naquele ano em dois álbuns, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e Magical Mystery Tour. Juntos os dois formam um par de discos impecável, que reúne a produção psicodélica mais intensa em um ano em que várias bandas lançaram dois discos clássicos (os Doors lançaram seu primeiro disco homônimo e Waiting for the Sun, o Experience de Jimi Hendrix tinha a estreia Are You Experienced? e o fantástico Axis… Bold as Love, o Jefferson Airplane teria seu Surrealistic Pillow e After Bathing at Baxter’s, os Stones lançariam Between the Buttons e Their Satanic Majesties Request).

Sozinho, Magical Mystery Tour é o que o filme original tentava ser: uma viagem psicodélica misteriosa, em que os Beatles, como mágicos, recebiam o ouvinte tentando emular a sensação lisérgica em letras e melodias – dos “roll up” que abrem a faixa-título ao clima nebuloso da hipnótica “Blue Jay Way” de George Harrison, da viagem instrumental de “Flying” (a primeira faixa assinada pelos quatro Beatles) ao delírio jocoso de “I Am the Walrus” (que Lennon compôs arbitrariamente de forma dúbia, apenas para atiçar a curiosidade dos que interpretavam demais suas letras), passando pela viagem à infância em Liverpool de “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane”, pelas baladas nostálgicas “The Fool on the Hill” e “Your Mother Should Know” e pelas letras simples, otimistas e diretas de “Hello Goodbye” e “All You Need is Love”. Um disco impecável que encerraria um ano mágico para os Beatles e os preparava para o início do fim de suas carreiras, quando, em 1968, começariam a se desfazer com o mítico Álbum Branco. Mas isso é outra história…

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Ouça a mixtape de Natal que Paul McCartney fez para os três Beatles em 1965 http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/24/ouca-a-mixtape-de-natal-que-paul-mccartney-fez-para-os-tres-beatles-em-1965/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/24/ouca-a-mixtape-de-natal-que-paul-mccartney-fez-para-os-tres-beatles-em-1965/#respond Sun, 24 Dec 2017 17:02:55 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4237

Aproveitando o clima de Natal, que tal essa mixtape que Paul McCartney gravou de presente para seus três companheiros de banda em 1965? Tido como um dos itens mais raros da discografia dos Beatles, a seleção de canções escolhidas como um presente natalino pode parecer trivial para os dias de hoje, décadas depois de fitas cassete e playlists permitirem que as pessoas pudessem gravar músicas diferentes umas para as outras, mas nos anos 60 era difícil fazer este tipo de seleção para dar de presente. Paul resolveu essa questão enfileirando músicas e gravando em um disco de acetato com apenas três cópias, colocando canções que queria que os amigos ouvissem. Assim, temos, na ordem, a inesquecível “Unforgettable” de Nat King Cole (que havia morrido um ano antes), “Someone Ain’t Right” da dupla Peter & Gordon (cujo Peter Asher era irmão da namorada de Paul na época, Jane), “I Get Around” dos Beach Boys, “Heatwave” de Martha & the Vandellas, “Don’t Be Cruel” de Elvis Presley e “Down Home Girl” dos Rolling Stones. A gravação, raríssima, já circulava entre os colecionadores de pirataria Beatle e finalmente chega aos meros mortais depois que uma boa alma a disponibilizou no YouTube.

Mas o ouro do registro não são as canções e sim o próprio Paul Mccartney as apresentando como se fosse um radialista norte-americano, imitando gírias e sotaques típicos e fazendo comentários engraçadinhos. Sob sua voz, efeitos sonoros que começava a experimentar em gravadores caseiros, que nos anos seguintes levariam os Beatles a voos ainda mais ousados na psicodelia. A banda havia acabado de lançar o hoje clássico Rubber Soul, mas este registro de Natal prova que ainda em 1965 Paul já estava pensando longe.

É assim que desejo um feliz Natal para os leitores deste blog. Na semana que vem faço uma retrospectiva do melhor do ano que termina. Até lá!

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Caixa comemorativa recupera o disco perdido do Velvet Underground http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/22/caixa-comemorativa-recupera-o-disco-perdido-do-velvet-underground/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/22/caixa-comemorativa-recupera-o-disco-perdido-do-velvet-underground/#respond Fri, 22 Dec 2017 21:01:26 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4230

Uma das bandas mais influentes do mundo completou 50 anos de vida fonográfica neste ano que chega ao fim, mas a comemoração do aniversário acaba de ser anunciada para fevereiro, quando uma parceria da gravadora Verve com o selo UMe reúne toda discografia do Velvet Underground em uma única caixa comemorativa. Chamada apenas de The Velvet Underground, a caixa traz todos os quatro discos oficiais da banda (The Velvet Underground & Nico de 1967, White Light/White Heat de 1968, The Velvet Underground de 1969 e Loaded de 1970) e o primeiro disco solo de sua primeira vocalista Nico (Chelsea Girl, de 1967), mas a grande estrela da coleção é o álbum 1969, que teria sido o quarto disco da banda caso não fosse recusado por sua gravadora na época, a MGM.

São vinte faixas que depois apareceram em outros lançamentos e edições mas que estão sendo reunidas pela primeira vez como um disco duplo. 1969 traz a banda em sua formação final, após a saída do fundador John Cale, quando este foi substituído pelo baixista Doug Yule. Essa é a ordem das faixas do chamado “disco perdido” do Velvet Underground:

Lado 1
“Foggy Notion (original 1969 mix)”
“One Of The Days (2014 mix)”
“Lisa Says (2014 mix)”
“I’m Sticking With You (original 1969 mix)”
“Andy’s Chest (original 1969 mix)”

Lado 2
“I Can’t Stand It (2014 mix)”
“She’s My Best Friend (original 1969 mix)”
“We’re Gonna Have A Real Good Time Together (2014 mix)”
“I’m Gonna Move Right In (original 1969 mix)”
“Ferryboat Bill (original 1969 mix)”

Lado 3
“Coney Island Steeplechase (2014 mix)”
“Ocean (original 1969 mix)”
“Rock & Roll (original 1969 mix)”
“Ride Into The Sun (2014 mix)”

Lado 4 (faixas bônus)
“Hey Mr. Rain (version one)”
“Guess I’m Falling In Love instrumental version)”
“Temptation Inside Your Heart (original mix)”
“Stephanie Says (original mix)”
“Hey Mr. Rain (version two)”
“Beginning To See The Light (early version)”

Gravado entre maio e outubro de 1969, o material que aparece neste novo lançamento já tinha sido lançado nas duas coletâneas de raridades que foram lançadas pela banda nos anos 80 (V.U., de 1985, e Another View, do ano seguinte), mas parte das faixas vem em versões mixadas em 2014. Há ainda versões para músicas do disco de 1970 (como “Ocean” e “Rock & Roll”) gravadas no mesmo período e até uma música com John Cale, “Stephanie Says”. A caixa The Velvet Underground é limitada a mil cópias e já está em pré-venda. Seu lançamento está previsto para o dia 23 de fevereiro do ano que vem.

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Há 25 anos, Dr. Dre reinventava o rap com a obra-prima The Chronic http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/15/ha-25-anos-dr-dre-reinventava-o-rap-com-a-obra-prima-the-chronic/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/15/ha-25-anos-dr-dre-reinventava-o-rap-com-a-obra-prima-the-chronic/#respond Fri, 15 Dec 2017 22:03:55 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4222

Andre Romelle Young tinha parcos 27 anos quando compôs seu trabalho mais sólido e uma das maiores obras-primas da música moderna há um quarto de século. Quando The Chronic chegou às prateleiras das lojas de disco dos Estados Unidos no dia 15 de dezembro de 1992, o jovem Dr. Dre já era um veterano na cena do hip hop californiano e, sem exagero, uma das pedras fundamentais de sua fundação. Mas o lançamento de seu primeiro disco solo, com seu rosto estampado numa capa que imitava uma marca conhecida de papel para cigarros e a esverdeada folha de maconha em seus rótulos, não apenas redefiniu o rap como principal revolução cultural do final do século 20 como estabeleceu o nome de Dre como um dos principais players da indústria fonográfica mundial.

Criada nos subúrbios de Nova York no final dos anos 70, a cultura hip hop rapidamente espalhou-se por todo o planeta, principalmente para grandes cidades que viam sua decadência retumbar entre drogas e violência. Mas Los Angeles, o polo oposto da influência nova-iorquina na cultura norte-americana, parecia o cenário completamente oposto para aquela nova transformação que mudava lentamente a cara do planeta. Sem arranha-céus e ruelas escuras, L.A. é uma cidade de largas avenidas e toda ostentação radical dos pioneiros do rap – que usavam joias, jaquetas de couro e correntes de ouro como uma forma de afirmar sua importância – parecia juvenil perto da influência de Hollywood e da cultura cinematográfica na maior cidade do estado da Califórnia. Era exatamente como fazer uma moda paulista pegar no Rio de Janeiro.

E lá estava Dr. Dre desde o início, agitando festas de electro equivalente às que Afrika Bambaataa agitava na costa leste. Mas desde o início ele sabia que era preciso criar uma sonoridade própria que distinguisse o som de sua cidade como antítese à do berço do rap. Começou a discotecar e rimar em alguns clubes de funk pela cidade e aos poucos incorporava a sonoridade de papas do gênero como Parliamente e Funkadelic para as batidas repetitivas daquele novo gênero. Adotou o apelido de Dr. J, mas logo mudou para seu pseudônimo atual, quando conheceu Antoine Carraby, que atendia pelo nome de DJ Yella, e começaram a trabalhar juntos, fundando, em seguida, o coletivo World Class Wreckin’ Cru. Em 1985, Dre lançou seu primeiro single solo, “Surgery“, que já dava as bases da sonoridade minimalista e grave que formam a base de sua musicalidade.

Mas o principal passo de sua carreira seria dado no ano seguinte, quando, ao lado de O’Shea Jackson (Ice Cube), Eric Wright (Eazy-E), Lorenzo Patterson (MC Ren) e Kim Nazel (Arabian Prince) e também do DJ Yella, fundou o grupo N.W.A., que mudaria a cara do rap mundial. Sigla para Niggas Wit Attitude, o grupo era o equivalente oposto ao nova-iorquino Public Enemy, principalmente por sua arrogância e violência. Enquanto o grupo de Chuck D e Flavor Flav levantavam palavras de ordem e denunciavam as agressões do sistema, o N.W.A. quebrava tudo por dentro, com letras que faziam apologia ao crime e à violência, além de bater de frente com o estado e peitar racistas. Seu single “Fuck tha Police”, lançado em 1988 e carro-chefe de seu disco de estreia, Straight Outta Compton, causou polêmica, provocou censura e até uma reação do FBI, que escreveu uma carta institucional para o grupo reclamando da atitude antipolicial demonstrada no single.

Musicalmente, o N.W.A. também era o oposto do rap da costa leste. Grave e menos frenético, seus instrumentais eram compostas por poucos samples, que criavam bases lentas e tensas, em que baixos e teclados elétricos conviviam com sirenes, apitos, guinchos e ruídos eletrônicos. Era uma forma de emular a paisagem horizontal da cidade ao mesmo tempo em que celebrava sua natureza sossegada. Mesmo as músicas mais agressivas tinham menos batidas por minuto que a maioria dos raps daquele período.

Dr. Dre

Ao impor-se como antítese do rap de Nova York, o N.W.A. criou um dos principais parâmetros da história do rap, o gangsta rap, cujas referências musicais vêm todas do trabalho de Dr. Dre à frente de seu grupo mais bem sucedido. Este encerrou suas atividades em 1991, logo após a saída de Ice Cube e o lançamento do disco Efil4zaggin, deixando o caminho livre para Dre contar a história de sua vida.

The Chronic não é apenas “A crônica” como seu título parece insinuar, mas também “a maconha”, na gíria de Los Angeles. A erva surge não apenas como uma declaração política mas também como uma decisão estética – a lentidão provocada pelo consumo da maconha parecia explicar o clima mais largado e suave que predomina pelas dezesseis faixas do disco. A marijuana está estampada até mesmo na capa do disco, que recria o rótulo de uma popular seda usada para enrolar baseados no início dos anos 90 chamada Zig Zag.

Rótulo da marca de papel para cigarros Zig Zag que inspirou a capa de The Chronic

Mas não era um disco sobre maconha. A planta dava apenas o tom determinado no decorrer do disco, como se seu aroma pudesse espalhar-se por todas as faixas, impregnando suas intenções logo nos primeiros beats. Se o N.W.A. era um programa policial de TV do ponto de vista contrário ao da polícia, The Chronic era um filme, um longa metragem sobre o momento da vida em que Dr. Dre atravessava.

Um dos principais produtores da história, Dre também era visto como um Midas musical. Quincy Jones de si mesmo, ele vai lentamente construindo sua reputação da mesma forma que compõe suas próprias músicas. E depois de trazer o rap para a costa oeste norte-americana e mudar a cara do gênero com o impacto violento do N.W.A., ele reinventava mais uma vez sua própria musicalidade com teclados agudos, beats cada vez mais pesados e letras contundentes – batendo em todos que pudessem atravessar seu caminho. Ao seu lado, revela seu principal coadjuvante e um dos inúmeros talentos que descobriu em sua jornada: Snoop Dogg.

O equilíbrio entre os sermões implacáveis da voz grave de Dre e a manha preguiçosa de Snoop dá ao disco um ar de filme policial dos anos 70, reforçado pelos samples utilizados pelo produtor (Donny Hathaway, Ohio Players, Parliament, Gil Scott-Heron, Joe Tex, Solomon Burke, Isaac Hayes, Trouble Funk George Clinton, Bill Withers, Leon Haywood e até Led Zeppelin e Malcolm McÇLaren), cada vez mais cirúrgico. Em seu primeiro disco solo, ele prefere ater-se a bases irresistíveis e refrões pegajosos em vez de atropelar o ouvinte com vociferando insultos musicais e disparando referências. O ar sossegado do disco também é parente dos velhos westerns e assim Dre recria toda a cultura californiana de um século anterior nos subúrbios de L.A. O novo velho oeste é um filme noir ambientado na favela.

Músicas como “Nuthin’ but a ‘G’ Thang”, “Fuck wit Dre Day (And Everybody’s Celebratin’)”, “Let Me Ride”, “Deeez Nuuuts” e “A Nigga Witta Gun” são marcos da história do rap e funcionam tanto sozinhas quanto no contexto principal do disco, que costura as faixas como se contasse uma história, inaugurando um formato que até hoje é utilizado pelos principais rappers do mundo. O impacto do lançamento do disco foi instantâneo e em meses o disco já tinha atingido o triplo disco de platina, equivalente a três milhões de discos vendidos. Não apenas lançou a carreira de Snoop Dogg como a de vários outros rappers menores que participaram do álbum, como Kurupt, Nate Dogg, Daz Dillinger e Warren G, criando um novo gênero que aos poucos foi sendo apelidado de G-funk, pois era menos agressivo que o rap produzido na época. Mas aos poucos o que poderia ser um retorno do funk acabou moldando todo o rap que veio a seguir – e não é exagero dizer que a carreira de artistas como Jay-Z, Kendrick Lamar e Kanye West seriam completamente diferentes (se é que existiriam), caso o disco não fosse lançado. Este último chegou a comparar o disco com a obra-prima de Stevie Wonder: “The Chronic ainda é o equivalente hip hop de Songs in the Key of Life. É o parâmetro que você mede seus discos para ver se você é sério”, escreveu em uma resenha do disco na revista Rolling Stone.

O disco também sacramentou Dr. Dre como um dos principais nomes da indústria fonográfica, sendo cada vez mais requisitado para produzir novos artistas enquanto diminuía suas próprias produções. Desde este lançamento, Dr. Dre lançou apenas dois discos (2001, em 1999, e Compton, em 2015), mas lançou a carreira de vários artistas – especificamente Eminem e 50 Cent -, além de produzir discos e singles de Eve, G-Unit, Gwen Stefani, Mary J. Blige, Missy Elliott, Busta Rhymes e Alicia Keys. Lançou a grife de fones de ouvidos Beats by Dre em 2008, que foi comprada pela Apple em 2014, por três bilhões de dólares, tornando Dre executivo da empresa criada por Steve Jobs e o primeiro bilionário do rap.

E ele sabe do papel de The Chronic em sua carreira, tanto que até hoje não liberou o disco para as plataformas de streaming, à exceção da Apple Music, da qual é sócio. Seus discos e singles podem ser ouvidos em todos os concorrentes da empresa, mas o disco de 1992 só está disponível nos domínios digitais da maçã.

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HBO compra direitos sobre o documentário David Bowie: Os Últimos Cinco Anos http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/14/hbo-compra-direitos-sobre-o-documentario-david-bowie-os-ultimos-cinco-anos/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/14/hbo-compra-direitos-sobre-o-documentario-david-bowie-os-ultimos-cinco-anos/#respond Thu, 14 Dec 2017 22:01:09 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4219

The Last Five Years foi um documentário produzido pela BBC inglesa nos últimos cinco anos da vida de um dos artistas mais criativos de nossos tempos, o inglês David Bowie, que morreu no início de 2016. Lançado na Inglaterra no início de 2017, o filme foi comprado pela emissora norte-americana HBO e será lançado no dia em que Bowie completaria 71 anos, dia 8 de janeiro nos Estados Unidos e possivelmente em outras emissoras afiliadas do canal espalhadas pelo mundo.

O documentário traça o período em que Bowie voltou a produzir novos discos depois de diminuir suas aparições públicas consideravelmente. Durante estes cinco anos, ele lançou dois álbuns aclamados pela crítica, o sóbrio The Next Day (lançado em 2013) e o críptico e ousado ★, seu vigésimo quinto disco, que veio a público dois dias antes de sua morte e impressionou a todos como um de seus discos mais sérios e um epitáfio sobre sua carreira.

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Os Último Jedi reinventa magistralmente a mitologia criada por George Lucas http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/13/os-ultimo-jedi-reinventa-magistralmente-a-mitologia-criada-por-george-lucas/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/13/os-ultimo-jedi-reinventa-magistralmente-a-mitologia-criada-por-george-lucas/#respond Wed, 13 Dec 2017 21:18:06 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4211

O melhor jeito de assistir a Os Último Jedi, oitavo episódio da saga Skywalker que estreia esta semana no Brasil, é ir ao cinema sem saber de nada – mas, calma, não precisa parar de ler o texto aqui. O próprio trailer trinca algumas surpresas ao apresentar cenários e criaturas que deixariam fãs boquiabertos caso não fossem mostrados de antemão, então se você conseguiu escapar da avalanche de notícias, fotos e cenas inéditas dos últimos meses e precisa ser convencido de que este filme vale a pena ser assistido, garanta sua sessão blindado destas notícias. Por isso, o texto abaixo mais descreve sensações e personagens do que entrega a história do filme – portanto, sem spoilers.

A principal crítica sofrida pelo Despertar da Força que fez a Lucasfilm, agora uma empresa Disney, ressuscitar sua galinha dos ovos de ouro em 2015 era que o Episódio VII era apenas uma recriação do Episódio IV, o primeiro filme da história de Guerra nas Estrelas, lançado em 1977. Com J.J. Abrams no comando, o filme é uma colcha de retalhos de referências dos seis filmes anteriores que usa a mesmíssima estrutura narrativa da produção que transformou George Lucas em milionário: Rey refaz o caminho do aprendiz de Luke, Kylo Ren é um aspirante a Darth Vader, o Supremo Líder Snoke é o novo Imperador, BB8 é o R2D2 2.0, Poe Dameron faz as vezes de Han Solo, Maz Kanata ecoa Yoda e todos os personagens que sobreviveram ao novo filme (Han Solo, Leia, Chewbacca, R2D2, C3PO) batem cartão com seus bordões na rapsódia de Abrams, que termina com uma nova Estrela da Morte explodindo após tomar um laser em seu inexplicável ponto fraco. Só o personagem Finn – o único Stormtrooper a desertar do exército do Império – e a fatídica cena central com Han Solo fogem das referências citadas estabelecidas pelo criador de Lost.

Era um risco que precisava ser corrido. J.J. Abrams tinha o desafio de tornar a série novamente atraente e divertida após o fiasco dos Episódios I, II e III, considerados manchas pesadas em uma das marcas mais importantes da cultura pop de todos os tempos. Apelou para a nostalgia como se preferisse não mexer no próprio time, ousou em pouquíssimos momentos, mas conseguiu atrair o velho público e uma nova audiência, transformando a ressurreição da série um dos principais sucessos comerciais deste século até agora.

Os Último Jedi tinha tudo para refazer um caminho parecido em relação a O Império Contra-Ataca e usá-lo como modelo para contar uma nova história. A comparação era reforçada pela cor do logo da série, pela primeira vez em vermelho na divulgação inicial, em vez de amarelo, talvez querendo indicar que seria um filme passional e pesado como foi o Episódio V. Mas o diretor Rian Johnson preferiu dar alguns passos para trás e ver toda aquela história dos sete primeiros episódios numa perspectiva galáctica. Quem são aquelas pessoas? Por que elas são tão importantes para a história da Força? O que são os Jedi?

A partir desses questionamento, ele desconstrói os personagens apresentados no filme anterior de forma soberba. Entra na natureza de Poe Dameron numa sequência de abertura de tirar o fôlego, trabalha a complexidade emocional de Rey, lapida um vilão perfeito em Kylo Ren, humaniza ainda mais o coração de Finn. Eles ganham uma profundidade completamente nova, esquivando-se dos clichês que os vinculam a outros personagens anteriores. Rey é decidida e obstinada, ao contrário de seu espelho original, o jovem Luke. Kylo Ren ganha contornos mais decididos, mesmo sem abandonar por completo o ar birrento que o transformava em um Darth Vader mimado – Adam Driver aos poucos constrói um vilão completamente novo. Poe Dameron e Finn ganham uma importância que no filme anterior parecia passageira e têm momentos definitivos no novo filme.

Mas é um filme dos gêmeos Luke e Leia. O que O Despertar da Força nos tirou de Mark Hammill, Os Últimos Jedi entrega de forma plena, bem como toda a complexidade super-heróica da antiga princesa Leia. Os irmãos são alguns dos principais alicerces desta nova trilogia e seus destinos no novo filme determinam o desenrolar básico da história.

Além disso há novos alienígenas, novos bichos, novas naves, armas, uniformes, veículos. O aspecto visual de Guerra nas Estrelas ganha um banho de loja que aponta para possibilidades infinitas, criando cenas memoráveis e de pleno apuro visual. Toda criação de computação gráfica que George Lucas insistiu na primeira trilogia deste século e que Abrams evitou no filme anterior, surge esplendorosa e realista neste novo filme. E os novos personagens apresentados – uma soldado, um malandro e uma general (não vou nem dizer o nomes dos atores) – também fogem de possíveis comparações com outros nomes conhecidos de outros filmes. Sem contar a presença massiva de mulheres – e o tratamento de animais como seres vivos, não como fontes de comida.

Os Últimos Jedi não é perfeito. São duas horas e meia de filme que começam com um bom pique, mas aos poucos desanda quase sonolento pela sua metade. Mas o ato final é tão surpreendente e empolgante (aplaudi três cenas específicas no cinema) que esquecemos facilmente do encontro frustrado num planeta Mônaco que nos revela um dos novos personagens.

E, principalmente, foge por completo das fórmulas já estabelecidas nos filmes anteriores. Rian Johnson está procurando novos rumos, novos fios da meada, novas ambiências, novas sensações, e amplia magistralmente a mitologia criada por George Lucas. Não por acaso, ele será o responsável pela próxima trilogia da saga, a primeira sem a presença de ninguém da família Skywalker.

Até o fim de semana volto a falar sobre o novo filme, desta vez enchendo o texto de spoiler. Mas diz aí na área de comentários o que você achou de Os Últimos Jedi.

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Encontradas fitas com gravações do encontro de David Bowie com o Devo! http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/07/encontradas-fitas-com-gravacoes-do-encontro-de-david-bowie-com-o-devo/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/07/encontradas-fitas-com-gravacoes-do-encontro-de-david-bowie-com-o-devo/#respond Thu, 07 Dec 2017 12:20:35 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4208

O registro de uma conexão improvável entre dois gigantes da música moderna foi encontrado recentemente por um de seus autores, quando o líder da banda new wave Devo revelou que teria gravações de seu grupo ao lado de ninguém menos que David Bowie. A revelação aconteceu na noite desta segunda-feira, quando, num encontro na loja de discos Sonos, em Nova York. Mark Mothersbaugh, fundador e principal mentor do grupo Devo, era uma das atrações em um painel de discussão sobre a importância de David Bowie, cuja morte completa dois anos no próximo mês, e reuniu nomes como o músico Nikki Sixx do Mötley Crüe, a líder do grupo Perfect Pussy (e ex-VJ da MTV norte-americana) Meredith Graves e o fotógrafo Mick Rock, todos contando histórias do tempo em que conheceram o ícone inglês. O papo teve a mediação feita pelo jornalista Rob Sheffield.

“David Bowie chegou e disse: ‘Quero produzir vocês'”, lembrou Mothersbaugh quando se referia a um dos primeiros shows de sua banda, no meio de 1977, na casa Max’s Kansas City. “E nós falamos que não tínhamos contrato com gravadoras. E ele disse: ‘Não importa, eu pago'”. Essa foi apenas uma das histórias contadas pelo líder do Devo, de acordo com o blog Bedford and Bowery.

Mothersbaugh continuou lembrando que Bowie não falou da boca pra fora e que o músico inglês subiu no palco para acompanhar a banda no segundo show que eles fizeram naquele lugar, no mesmo dia. “Ele subiu no palco e disse: ‘Essa é a banda do futuro e eu vou produzi-los este natal em Tóquio!’ E nós todos ficamos: ‘Parece ótimo. Estamos dormindo em uma van em frente ao Bowery essa noite, em cima do nosso equipamento”. Aquela noite terminou com Bowie levando a banda para seu hotel, levando-os para comer sushi, coisa que eles nunca tinham visto na vida.

Meses depois, Brian Eno, que produziria o primeiro disco do Devo (Q: Are We Not Men? A: We Are Devo!, de 1978) levou a banda para o estúdio Conny Plank, em Colônia, na Alemanha, e no primeiro dia de gravação tocou em uma sessão com o grupo, David Bowie e outros músicos alemães. “O Devo tocou com David Bowie, Brian Eno, Holger Czukay (do grupo alemão Can) e alguns outros músicos eletrônicos alemães que estavam por ali”, revelou Mark, que também contou que acabou de reencontrar a gravação histórica deste dia. “Eu ainda não a escutei, mas acabei de encontrar esta fita”, contou.

Como se não bastasse, ele ainda contou as fitas originais das gravações do primeiro disco, gravadas em 24 canais e cheias de anotações feitas por Eno. “Tem umas faixas com coisas escritas como ‘vocais de David’ e ‘sintetizadores extra de Brian’ e eu de repente eu lembro que tirei essas participações quando estávamos fazendo a mixagem final do disco”, explicou, acrescentando que não usou essas gravações no disco final porque haviam se envolvido com empresários picaretas, levando-o a se tornar “completamente paranoico em relação a pessoas se metendo nas nossas coisas”.

No final, Mothersbaugh deixou a dúvida no ar. “Acho que deveríamos ver o que tem nessas fitas. Estou realmente curioso pra saber o que diabos fizemos.”

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Há 40 anos, o Wire explorava todas possibilidades do punk em Pink Flag http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/04/ha-40-anos-o-wire-explorava-todas-possibilidades-do-punk-em-pink-flag/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/04/ha-40-anos-o-wire-explorava-todas-possibilidades-do-punk-em-pink-flag/#respond Mon, 04 Dec 2017 20:00:56 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4201

Quando 1977 chegou ao fim, parecia que o ano havia virado o rock do avesso. Depois de anos borbulhando no underground de Nova York e Londres, o punk finalmente vinha à tona – não apenas a partir da consolidação da safra nova-iorquina, que viu todas suas bandas (Television, Patti Smith Group, Ramones, Blondie e Talking Heads) assinar com grandes gravadoras encarnado, mas principalmente pela doutrina de choque e destruição dos Sex Pistols, primeiro porque a banda inglesa materializava visualmente aqueles novos ideais estéticos mas também porque validava o descontentamento de toda uma nova geração de adolescentes conterrâneos, que pegavam guitarras e máquinas de xerox, mas fazer sua própria cena musical longe das grandes casas de shows, das lojas de discos e das emissoras de rádio. Todas as grandes bandas do punk inglês surgiram ou se consolidaram ao mesmo tempo em que os Pistols: Clash, Damned, Buzzcocks, Jam, Slits e X-Ray Specs (além de artistas que orbitavam ao redor do punk, como o Police e as bandas de ska da gravadora 2Tone) saíram das garagens para as páginas dos jornais, provocando caos e desordem em shows cada vez mais rápidos e barulhentos.

Quando 1977 chegou ao fim, uma banda minúscula chamada Wire, criada naquele mesmo ano, lançou seu primeiro disco e correu riscos musicais para além dos três acordes e das palavras de ordem. Cruzando o limite que separava o punk das ousadias sonoras que viriam a ser conhecidas mais tarde como pós-punk, o grupo londrino ainda mantinha-se do lado original daquele movimento cultural, mas buscava fugir das imposições estéticas determinadas pelo próprio rock’n’roll. Ao lançar seu Pink Flag no dia 4 de dezembro de 1977, o Wire também explorava todas as possibilidades do punk – e seu legado mudaria inclusive a forma como o gênero seria percebido tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo.

Formada pelo guitarrista e vocalista Colin Newman, pelo guitarrista Bruce Gilbert, pelo baixista Graham Lewis e pelo baterista Robert Gotobed, o Wire começou ao redor do guitarrista e vocalista George Gill, dono de um conceito que evoluiu para uma banda chamada Overload, no início de 1977. Mas os ensaios não empolgavam, as letras e músicas do dono da banda eram vistas com desprezo pelos outros integrantes e bastou que Gill faltasse a um ensaio (depois de quebrar a perna tentando roubar um amplificador de guitarra de outra banda), que os quatro integrantes de seu grupo percebessem que a banda tinha um problema: seu fundador. Ao mostrar para o grupo suas primeiras canções, Newman conseguiu rapidamente que os outros músicos entendessem que a falta de fluência musical vinha da presença de Gill, e aos poucos puderam ir para além das fronteiras estabelecidas pelo punk. Seus primeiros shows aconteceram em abril de 1977 e já nas primeiras apresentações experimentavam algo inédito no gênero: o corte seco das músicas pela metade, quebrando completamente a expectativa do público, que se engalfinhava em rodas de pogo conduzidas pelo barulho.

Aos poucos reduziam o tempo das canções drasticamente, muitas vezes por considerarem o material desenvolvido em um único ensaio suficiente. As músicas às vezes não tinham refrão, só duas estrofes, ancoradas sempre por riffs de guitarras secos e minimalistas como o ritmo tribal de sua percussão, deixando o baixo e o vocal livres para explorar novas frentes melódicas. Ao assistir a shows dos Buzzcocks e dos Ramones no meio daquele ano os fez perceber que a velocidade também era um limite a ser rompido – daí passaram a compor faixas ainda mais curtas e diretas, bem como números com andamento mais lento que aquele do punk tradicional.

Pink Flag sintetizava todo o espírito da banda de forma definitiva. Eram vinte e uma canções em pouco mais de meia hora de disco, com músicas que nem mesmo um minuto tinham, em alguns casos. Os temas eram muito mais diversos que os explorados pelo punk: a tensa “Reuters”, que abria o álbum, descrevia uma zona de conflito do ponto de vista de um correspondente de guerra; a urgência de “Start to Move”, “It’s So Obvious” e “12XU” contrastava com o ar contemplativo de canções sentimentais como “Fragile”, “Strange”, “Lowdown” e “Feeling Called Love”, questões políticas fugiam de discussões partidárias em faixas como “Mr. Suit”, “The Commercial”, “Brazil” e a faixa-título. Todas as canções pareciam pequenos manifestos modernistas e poderiam ter suas letras sido escritas no início do século 20, com frases de efeito que tinham origens futuristas, dadaístas, situacionistas e pós-modernistas. A novidade estética era a urgência dos sons e palavras, quase sempre indo além do que se esperava de um disco de punk rock.

A inventividade e a criatividade do grupo logo o levariam para além daquele lugar musical. Nos discos seguintes, especialmente Chairs Missing, de 1978, 154, do ano seguinte e o ao vivo Document and Eyewitness, de 1981, o Wire transcendia a pressa e a selvageria do punk primal, abraçando a natureza artística que acompanhava o grupo desde seus primeiros passos. Novos instrumentos, temas e andamentos foram incorporados ao som do grupo e cada um destes quatro primeiros álbuns poderia ter sido gravado por uma banda diferente, tamanhos os saltos evolutivos que deram entre um registro e outro, quase sempre negando os preceitos tecidos no trabalho anterior.

Mas o impacto de Pink Flag atravessaria o Atlântico e teria uma influência muito maior do que em seu país de origem, mesmo não vendendo bem em nenhum dos mercados. Mas como os Estados Unidos estavam ainda entendendo o que era o punk a partir do punk inglês (pois haviam pouquíssimas bandas punk para além das de Nova York), todos os discos punk ingleses que apareciam eram tratados como mensagens vindas de um planeta utópico – e Pink Flag parecia ensinar que o punk poderia ir para muito além da cartilha dos três acordes básicos, descendentes do rock mais cru.

Assim, o disco tornou-se fundamental para uma nova geração de bandas punk. Ele praticamente serviu como um dos pilares da cena de hardcore de Nova York, com músicas regravadas pelo Minor Threat (“12XU”) e por Henry Rollins (“Ex-Lion Tamer”), repercutiu na cena californiana (sua “Mannequin” foi regravada pelo Firehose e os Minutemen sempre assumiram o disco como influência para suas músicas curtíssimas), além de ter sido regravado pelo R.E.M. em seu disco Document (com a música “Strange”). Seu legado norte-americano praticamente consolidou um novo gênero musical descendente do punk, o hardcore, que evoluiria ainda mais com outras influências locais.

Mas o grupo, que está na ativa até hoje, sempre fugiu de fórmulas. Tanto que quando fez sua primeira turnê pelos Estados Unidos, no final dos anos 80, cientes que estavam sendo esperados pela influência de seu primeiro disco, contratou a banda Ex-Lion Tamers para tocá-lo na íntegra como show de abertura. Assim, os punks que queriam apenas ouvir seu disco favorito da banda sentiam-se satisfeitos logo no início e o grupo não precisaria se preocupar em revirar o passado. Um dos discos mais influentes do punk inglês, Pink Flag continua sendo passado de geração para geração como um segredo, uma lenda urbana, uma comunicação em código. Felizmente.

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Há 40 anos, Brian Eno firmava sua reputação com Before and After Science http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/02/ha-40-anos-brian-eno-firmava-sua-reputacao-com-before-and-after-science/ http://matias.blogosfera.uol.com.br/2017/12/02/ha-40-anos-brian-eno-firmava-sua-reputacao-com-before-and-after-science/#respond Sat, 02 Dec 2017 20:01:07 +0000 http://matias.blogosfera.uol.com.br/?p=4195

Brian Eno é um dos principais nomes da música popular contemporânea, embora não seja reconhecido do grande público. Pensador e provocador, o “não-músico” (como gostava de se referir) teve uma breve carreira de popstar ao integrar a formação clássica do Roxy Music no início dos anos 70, mas logo sairia da banda rumo a experimentações estéticas que consolidariam a reputação de grandes ícones do pop do final do século passado, como David Bowie, Talking Heads e U2, além de viajar em seus próprios trabalhos solo, seja ao lado de músicos de alto calibre (como Robert Fripp, John Cale, Kevin Ayers, David Byrne, Jah Wobble, Daniel Lanois, entre outros), seja estabelecendo os parâmetros para sua grande contribuição autoral para a música moderna, firmando os paradigmas do que hoje chamamos de ambient music. Mas se passou parte dos anos 70 rascunhando o futuro da música moderna como a conhecemos hoje, estes traços musicais atingiram o ápice no dia 2 de dezembro de 1977, quando, há quarenta anos, lançava o quinto disco com seu nome, que cravava sua importância com o espetacular Before and After Science.

Eno ficou conhecido por provocar seus companheiros de banda a buscar novas alternativas para além das convenções musicais estabelecidas. Brincava que se tivesse se atrasado ou adiantado no dia em que conheceu o saxofonista Andy McKaye no metrô de Londres talvez nunca tivesse entrado no ramo da música e seria um acadêmico das artes sem nenhum vínculo com a música comercial. A passagem pelo Roxy Music, que durou apenas dois anos, foi o suficiente para que ele aplicasse, na prática, conceitos estéticos que explorava enquanto era universitário. Só foi subir no palco com a banda – fazendo vocais de apoio ao vivo e tocando teclados – depois de começar apenas na cabine de som, mixando o som da banda ao vivo. Ao ir para a ribalta, aproveitou a estética glam de sua banda para levar ao extremo suas aparições ao vivo, transformando-se em um modelo cênico radical dos conceitos que aplicava na música, vestindo-se de forma extravagante. Gostava de dizer que seu principal instrumento era o gravador de fitas (e orgulhava-se possuir mais de trinta aparelhos desse tipo) à medida em que estabelecia sua carreira solo, dizia que não tocava músicas e sim músicos.

Brian Eno

Seus primeiros quatro discos solo reforçariam essa mentalidade. Os dois primeiros, Here Come the Warm Jets e Taking Tiger Mountain (by Strategy), ambos de 1974, forçavam os limites sônicos da música pop sem precisar desestruturá-la. Nos dois discos, Eno liderava um grupo de músicos que reunia titãs da música europeia dos anos 70, como todos integrantes do Roxy Music (à exceção de Bryan Ferry), membros do King Crimson, Hawkwind, Pink Faries, Genesis, Soft Machine e Winkies, enquanto Eno aparecia tocando instrumentos batizados como “piano simplista”, “laringe elétrica” e “guitarra-cobra”. Gravados em pouco tempo, seus dois primeiros discos também consolidariam uma técnica criativa que ele materializa como um conjunto de cartões chamado Oblique Strategies (Over One Hundred Worthwhile Dilemmas) (Estratégias Oblíquas – Mais de Cem Dilemas Que Valem a Pena), que traziam desafios estéticos para os músicos com quem estava gravando. Chamava um músico e puxava uma carta, que vinha com instruções simples e desafiadoras, como “tente fingir”, “apenas um elemento de cada tipo”, “o que aumentar? o que reduzir?”, “honre o erro como uma intenção oculta”, “pergunte ao seu corpo” e “trabalhe em uma velocidade diferente”. Além disso, ele usava o próprio corpo – dançando ou fazendo gestos – para guiar as experiências musicais que queria introduzir, mas sem nunca deixar as canções soando experimentais ou esquisitas.

Os dois discos seguintes, Another Green World e Discreet Music (ambos gravados em 1975), iam para o outro extremo, justamente ao descartar o formato canção. Apenas cinco das quatorze músicas de Another Green World (considerado seu principal álbum) tinham letras e as melodias se estendiam em longas texturas horizontais minimalistas, que começariam a definir o conceito de música ambiente (concebido a partir de outra ideia ousada, do compositor Erik Satie, a “música-mobília”), que aos poucos seria toda uma nova vertente desde a incipiente música eletrônica do período até hoje. Discreet Music ia ainda além, principalmente a partir da faixa-título, que ocupava todo o lado A do vinil com trinta minutos de contemplação sonora.

Receoso de se repetir, Brian Eno deixou os holofotes e passou para o estúdio, começando sua bem-sucedida carreira como produtor de artistas estabelecidos, ajudando David Bowie a se reinventar em sua trilogia gravada em Berlim, onde o músico inglês abraçou completamente os conceitos estéticos de Eno, principalmente no lado B do disco Low. Nos dois anos entre seus quatro primeiros álbuns e o vindouro Before and After Science, Eno começou a trabalhar no equilíbrio entre essas duas personas: o experimentalista pop e o compositor de vanguarda.

O disco de 1977 é praticamente um manifesto de suas duas metades. O lado A é composto por canções baseadas em ritmo, que, além de ajustar o formato canção para uma novidade que vinha se desenvolvendo do outro lado do Atlântico (a disco music que seria o big bang para toda a dance music do final do século passado) também conectava-se com seus novos colaboradores alemães. Eno chamaria integrantes de bandas como Can, Cluster e Harmonia da mítica versão alemã para o rock progressivo da época (conhecidos pelo termo pejorativo krautrock) e em músicas “No One Receiving” e “Kurt’s Rejoinder” anteciparia em décadas a cena disco punk nova-iorquina puxada pelo grupo LCD Soundsytem.

Na faixa “King’s Lead Hat” saudava os novatos Talking Heads no título da música (um anagrama para o nome da banda de David Byrne), estreitando o contato que o tornaria produtor daquele grupo em seus três próximos álbuns (More Songs About Buildings and Food, Fear of Music e Remain in Light), ajudando a banda de Nova York ultrapassar o pós-punk e abraçar as músicas eletrônica, caribenha e africana. O lado B do disco, uma obra-prima por si só, elevava os conceitos de ambient music para além, aos poucos dissolvendo-os com a música pop experimental que havia lapidado em seus dois primeiros discos.

Before and After Science é o disco que marca o fim de sua carreira como popstar e sela seu destino como tutor para bandas em ascensão, além de experimentalista conceitual. A partir deste disco, Brian Eno passa a usar sua discografia como exercícios de estética ao mesmo tempo em que auxiliava artistas como Devo, James, Slowdive, Laurie Anderson, Grace Jones, Coldplay e, principalmente, o U2 a explorar novos territórios musicais. É o produtor da coletânea de noise vanguarda No New York e gravou ao lado de nomes como John Cale, David Byrne, Robert Fripp, Cluster e Harold Budd, entre outros. É o álbum que demonstra para os anos 70 como seria a música pop do futuro ao mesmo tempo em que consolida sua reputação, tornando-o livre para fazer o que quiser sem precisar dar nenhuma satisfação – comercial ou não.

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