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"Revolver", lançado há 50 anos, levou os Beatles para uma viagem sem volta

Alexandre Matias

05/08/2016 00h01

Quando Revolver, o sétimo disco dos Beatles, chegou às lojas britânicas naquela sexta-feira 5 de agosto de 1966, exatamente meio século atrás, encerravam-se vários ciclos na carreira da banda inglesa. O mais recente deles havia sido iniciado no final do ano anterior, pouco antes do lançamento de seu disco anterior, o festejado Rubber Soul. Havia uma inquietação nos quatro rapazes que exigia alguma mudança drástica, radical – e lá foi o empresário do grupo, Brian Epstein, para Memphis, nos Estados Unidos, saber qual seria o custo de gravação de um disco nos hoje históricos estúdios da gravadora Stax, uma das capitais da soul music daquele país, que havia registrado trabalhos de nomes como Otis Redding, Sam & Dave, Booker T. & the MG's, Wilson Pickett e Carla Thomas, entre outros. Consideravam os estúdios da EMI, o atual meca beatle Abbey Road, ultrapassados e queriam experimentar novidades – inclusive mudar de produtor, trocando George Martin por Jim Stewart.

John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr estavam no topo da música pop de seus dias, mas aquilo estava os estressando. A histeria dos fãs, a impossibilidade de se ouvir ao vivo nos próprios shows, a adulação da mídia, o intenso frenesi global – tudo que antes era termômetro do sucesso da banda se transformava em uma rotina exagerada, intensa e cafona, obrigando-os a pular de hotel em hotel, rádio em rádio, voo em voo, sem parar, ao mesmo tempo em que mal conseguiam ter relações com outras pessoas além de seu próprio círculo interno. E todo o sucesso não era garantia de qualidade – suas músicas eram questionadas constantemente por sua superficialidade e a relação da banda com seu público fazia-os parecer infantis. Rubber Soul, o disco lançado no final de 1965, já havia sido um passo ousado rumo a uma maturidade que muitos não achavam que os Beatles fossem capazes. Mas para eles ainda era pouco. Eles queriam mudar mais.

Outro ciclo que estava se fechando naquela época era o contrato da banda com a gravadora EMI. A própria questão de gravar o novo disco em outro estúdio veio da iminência do fim daquele acordo (que só foi renovado no início de 1967 – tecnicamente os Beatles trabalharam de graça para a EMI em 1966) e depois da Stax foram sondados os estúdios da Atlantic, em Nova York, e da Motown, em Detroit. A facilidade e a comodidade de ter um estúdio à mão acabou pesando a favor da londrina EMI e no dia 6 de abril de 1966 eles voltavam ao estúdio Abbey Road para uma viagem sem volta.

A primeira música que gravaram não tinha nada a ver com o que se esperava dos Beatles. Ou mesmo de qualquer outra banda de rock. Era uma música etérea, sem variação de acordes, cuja letra escrita por John Lennon havia sido inspirada pelo Livro Tibetano dos Mortos. "Desligue sua mente, relaxe e vá com o fluxo", ele cantava, pedindo para George Martin gravá-lo como o dalai-lama pregando no Himalaia, "ouça as cores do seu sonho". Do outro lado do estúdio, Paul McCartney distorcia uma gargalhada sua até que ela soasse como uma gaivota, e disparava a nova gravação como se pudesse sobrevoar sobre o profeta Lennon. A bateria de Ringo, esparsa e hipnótica, era misturada a efeitos sonoros que o produtor coordenava com outros técnicos no estúdio; enquanto um deles (o engenheiro Geoff Emmerick) fazia a voz de John ser filtrada por um pedal Leslie ativado por um órgão Hammond e outro (Ken Townshend) inventava uma forma de gravar o mesmo vocal superposto em cima de si mesmo, desalinhando levemente as duas ondas sonoras, um recurso usado até hoje chamado ADT (artificial double tracking). Ainda não tinham título para a música, mas sabiam que estavam começando algo completamente novo, e a chamaram de "Mark I" – o primeiro marco.

Os Beatles na sessão de fotos da contracapa de Revolver

Era a mesma banda que um ano antes havia gravado "Help!" e "You've Got to Hide Your Love Away", músicas de fácil assimilação e de enorme sucesso, que agora expandia os horizontes de sua música para muito além do pop. Se continuariam em Londres, na EMI e no Abbey Road, sabiam que iriam fazer tudo diferente. É o disco que conclui um aprendizado sutilmente no disco anterior – que o estúdio pode ser tocado como se ele mesmo fosse um instrumento. "Vamos fazer literalmente qualquer coisa", disse John Lennon ao repórter do semanário londrino NME, em março daquele ano, "música eletrônica, piadas… Uma coisa é certa: o próximo disco vai ser muito diferente."

O estúdio não era mais um ambiente de registro sonoro, era um laboratório de experimentações. É a contribuição mais radical que os Beatles dão à música pop, reforçada ainda pelo fato de que, meses após o lançamento do disco, eles não fariam mais shows ao vivo. Reverteram, portanto, toda a experiência da música popular da época que exigia a presença do artista como protagonista de seu encontro com o público (o show) e jogam todo o foco na produção fonográfica, colocando a música – e mais especificamente o álbum – no centro desta nova música. O fato de serem uma banda e não um artista solo mexeu ainda mais com essa evolução de cenário e assim os Beatles cresciam como uma entidade – e seus discos não eram mais coleções de músicas que tocavam no rádio, e sim o equivalente sonoro de um livro.

A experimentações iam para todos os lados. Solos de guitarra invertidos, canções gravadas em uma velocidade e tornadas mais lentas no estúdio, instrumentos eruditos e estrangeiros, colagens e efeitos sonoros, metais, percussão, microfones colocados em lugares inusitados, cordas inspiradas nos filmes de Truffaut e Hitchcock, letras sobre drogas, morte, sonhos, impostos e um submarino amarelo. Sonatas perfeitas, saudações à vida, composições inspiradas pelos Beach Boys, por Bob Dylan e LSD, romances críveis, palavras de ordem, sentimentos expostos e uma viagem à Índia. Três músicas de George Harrison e uma cantada por Ringo, um conjunto de músicas que não estão entre os grandes hits da banda mas que moram no coração de qualquer fã do grupo.

Esse conjunto de 14 novas canções tinha de ter um nome que fizesse jus àquela nova fase. Eles flertaram com Abracadabra; Lennon sugeriu Four Sides of the Eternal Triangle e Ringo pensou em After Geography, pra brincar com o disco Aftermath dos Rolling Stones. Também cogitaram Magic Circles, Beatles on Safari e Pendulum, até chegar no nome definitivo, trocadilho entre a arma e o próprio disco, girando para ser ouvido, rodador. O nome foi a deixa para que um antigo colaborador da banda, o fotógrafo Robert Freeman (autor das capas dos discos With the Beatles, Beatles for Sale, Help! e Rubber Soul), mandar sua sugestão de capa.

A capa proposta pelo fotógrafo Robet Freeman

Mas os Beatles queriam experimentar. Assim, colocaram na capa de Revolver uma ilustração em preto e branco dos quatro entre uma colagem de velhas fotos do grupo (algumas delas estavam na contracapa de Rubber Soul) feita por seu velho amigo Klaus Voorman, compadre da banda desde os tempos em que eles tocavam em Hamburgo, no início da década. Voorman recebeu quarenta libras pelo trabalho, que depois lhe rendeu o Grammy de melhor capa de disco, no ano seguinte. A imagem apresentava os Beatles como um monumento à própria importância, representados como heróis gregos, seres mitológicos. Após o lançamento de Revolver, os Beatles fariam sua última turnê e parariam de fazer shows. Nenhuma música de Revolver nunca foi tocada ao vivo. Assim, eles fechariam o último ciclo, deixando de ser uma mera banda de rock para ser o maior nome da música pop do século passado – cujo legado mantém-se até hoje.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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