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Há 50 anos, os Beatles inauguravam a música pop moderna com "Rubber Soul"

Alexandre Matias

03/12/2015 01h36

RubberSoul

É difícil cravar qual é o principal momento da história dos Beatles. A mitologia em torno da biografia do grupo inglês cogita vários exemplos, em épocas diferentes: a chegada do grupo aos Estados Unidos em 1964, o lançamento do disco Sgt. Pepper's em 1967, a consciência do próprio fim registrada no disco Abbey Road de 1969. Um sério candidato a esse posto, embora bem mais discreto que seus concorrentes diretos, completa 50 anos nesta quinta-feira. Rubber Soul, lançado exatamente no dia 3 de dezembro de 1965, é quando o grupo toma consciência de sua importância e passa a exercê-la, explorarando limites que a música popular e a indústria fonográfica nem imaginavam existir.

É em Rubber Soul que os discos dos Beatles – e depois, os de todo mundo – deixam de ser convencionais e que o grupo começa a experimentar novos arranjos e ampliar sua temática. Diretamente influenciados pelas turnês que fizeram na Europa em junho e julho e pelos Estados Unidos em agosto daquele ano, os Beatles praticamente compuseram o disco no mês de gravação que tiveram entre 12 de outubro e 15 de novembro, no estúdio da EMI. E além de incorporar sonoridades mais contemporâneas vindo dos EUA (especificamente Bob Dylan, Beach Boys e Byrds, que aos poucos substituem o cânone clássico venerado pelo grupo: Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little Richard e Buddy Holly), eles também começam a explorar novos instrumentos e novas abordagens líricas. É o começo da grande transformação dos Beatles, que culmina com o disco-manifesto Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band.

Olhando em retrospecto – e em comparação às obras que vieram a seguir -, Rubber Soul é facilmente menosprezado como um disco acústico dos Beatles e parece ficar à sombra dos clássicos que o grupo foi lançando à medida em que os anos 60 chegavam ao fim.

Rubber Soul, no entanto, é a fagulha que acende o fogo autoral de fato nos Beatles. Até então o grupo só havia lançado discos convencionais, que reuniam sucessos radiofônicos, músicas de segundo escalão e versões para sucessos alheios ou trilhas sonoras dos próprios filmes. Apenas um disco (A Hard Day's Night, de 1964) era composto apenas por músicas escritas pelos próprios Beatles, mas Help!, lançado na metade de 1965, já dava pistas que havia uma inquietação no grupo, com Paul McCartney sendo incentivado a gravar uma balada ("Yesterday") sem o acompanhamento da banda e sim com um quarteto de cordas e John Lennon mencionando, de leve, o uso de drogas pela primeira vez em disco (quando canta "I get high when I see you go by", em "it's Only Love"). Mas ninguém poderia prever um salto tão drástico quanto Rubber Soul.

O disco pela primeira vez não trazia o nome da banda na capa, cuja imagem era uma foto levemente distorcida do grupo, e exibe sonoridades completamente diferentes e complementares. Explorava o flerte com a música erudita iniciado em "Yesterday" em faixas como "Michelle" (que tinha versos em francês) e "In My Life", que trazia um solo de piano distorcido para soar como se fosse um cravo. Outro instrumento estranho ao rock mas caracteristico dos Beatles desde então dá as caras pela primeira vez em Rubber Soul, depois que George Harrison descobre uma cítara indiana nas filmagens de Help! e sugere solá-la em "Norwergian Wood (This Bird Has Flown)". Paul McCartney distorce seu baixo com o efeito fuzz em "Think for Yourself", enquanto Ringo Starr começa a explorar outros instrumentos de percussão para além da bateria.

A temática das letras também começa a mudar, principalmente as de John Lennon, diretamente influenciado por Bob Dylan. As músicas já não tratam de namoricos e paqueras dos discos anteriores e músicas como "Girl", "I'm Looking Through You", "You Won't See Me", "Run for Your Life" e "This Bird Has Flown" trazem abordagem menos utópicas em relação a relacionamentos, fazendo um clima mais cético pairar sobre todo o álbum. "The Word" é a primeira vez que o grupo se refere ao amor fora do contexto romântico, enquanto "Nowhere Man", "Drive My Car", "In My Life" e "Think for Yourself" lidam com temas novíssimos na temática do grupo, como existecialismo, showbusiness, nostalgia e atitude, respectivamente. O disco, composto apenas por músicas da banda, também parece não deixar a segunda metade do álbum (o velho "lado B") com as faixas menos cotadas para fazer sucesso e os hits são distribuídos igualmente por todo o disco.

O termo "plastic soul" (alma de plástico) era uma brincadeira que Mick Jagger fazia com os Beatles sobre a geração de bandas a que pertenciam – bandas inglesas fazendo sucesso nos Estados Unidos tocando música norte-americana. A expressão faz um trocadilho com uma versão artificial da soul music (de plástico) e com uma alma inglesa que conseguia se adaptar facilmente a diferentes ambientes e situações. Ela se referia à toda a safra de bandas britânicas que invadiam os EUA no início dos anos 60 mas era particularmente apropriada aos Beatles, afinal foram eles quem abriram este caminho ao assimilar toda a música que vinha dos Estados Unidos – soul, country, rock, rockabilly, temas de musicais, gospel, rhythm'n'blues – como uma mesma musicalidade, devolvendo para o resto do mundo um amálgama sonoro que contemplava diferentes sonoridades numa mesma canção. Paul McCartney surrupiou o termo de Jagger e mudou a alma de plástico para borracha ("rubber") e assim batizou o novo disco da banda.

A partir de Rubber Soul, a sonoridade dos Beatles se tornava ainda mais autoral e densa, menos frívola e adolescente. Nada tão performático quanto os saltos que dariam no futuro, ao misturar música experimental com alegorias psicodélicas, novas técnicas de gravação com surrealismo, colagens sonoras e uma orquestra inteira, guitarras distorcidas e músicas que se misturam umas nas outras. É quando o grupo começa a namorar o estúdio como instrumento musical e percebe que há todo um mundo a ser explorado. Nada disso aconteceria sem o ousado passo chamado Rubber Soul, que funciona como o clássico furacão do O Mágico de Oz, transformando o filme preto e branco do início dos anos 60 na superprodução tecnicolor da segunda metade daquela década – finalizando um trabalho que havia sido iniciado por Bob Dylan no começo daquele ano, com o disco Bringing it All Back Home: inaugurar a música pop moderna. E levá-la para as massas.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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