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Morreu George Martin, o homem que nos ensinou o que faz um produtor

Alexandre Matias

09/03/2016 08h01

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A notícia da morte de George Martin, um dos poucos concorrentes sérios ao posto de "quinto beatle", não chega a ser uma surpresa devido à idade avançada do produtor, mas não deixa de ser recebida com tristeza. Sua contribuição para a obra dos Beatles – um dos grandes legados culturais do século passado – marca toda a carreira fonográfica da banda, afinal é Martin o sujeito que vê o potencial daquele grupo de caipiras barulhentos do norte da Inglaterra e ao mesmo tempo o principal incentivador das incursões musicais que tornaram o grupo tão relevante.

Com isso, George Martin teve um papel muito maior do que o de simples executivo de gravadora ou técnico de gravação. Assumiu parte do papel de diretor artístico daquele que aos poucos foi se tornando um projeto pessoal seu: instigar os talentos brutos daqueles quatro jovens de Liverpool para extrair as mais belas canções e mais loucas viagens dos quatro em disco. O selo que comandava, o Parlophone, era minúsculo o suficiente para que ele pudesse assumir diferentes funções. E ao mesmo tempo em que forjava discos e canções que entraram para o inconsciente coletivo, mostrava para o grande público qual era o papel de um produtor musical.

Não era um simples técnico de estúdio que indica o posicionamento de microfones, sugere timbres e arranjos ou exige pela enésima vez que se toque aquele determinado trecho. Com os Beatles, George Martin foi entendendo que naquela sua função havia um quê de psicólogo, algo menos tecnológico e mais humano, algo que ia além apenas da gravação de canções para atingir um público cada vez mais amplos. Afinal ele os contratou pelo entusiasmo do empresário do grupo Brian Epstein e quase desistiu deles após ouvir as primeiras canções que haviam gravado pelo selo, mas foi convencido a lançá-los depois que conheceu John Lennon e Paul McCartney pessoalmente. Foi a personalidade dos dois que o cativou.

Martin era escolado: reconhecia nos Beatles o traço imprevisível e inteligente do humor do rádio britânico, que eram os principais artistas da Parlophone, a começar pelo emblemático Peter Sellers. E percebeu que os quatro rapazes poderiam render mais como músicos caso fossem apresentados às referências certas.

Do ponto de vista dos Beatles, George era visto como um professor. Uma década e meia mais velho que os quatro e com sua fleuma britânica impecável, ele entrava no estúdio como um professor em uma sala de aula e logo as risadas e brincadeiras paravam para que eles começassem a trabalhar. Mas era também um professor emocional, que falava diretamente com seus quatro alunos não apenas sobre música – e nisso o humor britânico era o denominador comum que reunia os cinco.

E essa interação no estúdio deu origem a diversos outros casos de produção autoral, permitindo inclusive que produtores futuros lançassem seus próprios discos. O barateamento das tecnologias de gravação, o surgimento do hip hop e da música eletrônica e a excelência dos atuais programas digitais de edição de som permitiu que as gerações de produtores seguintes se inspirassem no legado de Martin com os Beatles e fossem além. Hoje há pelo menos três gerações de músicos que não tocam instrumentos musicais e sim outros músicos – um espectro gigantesco que abrange Brian Eno, Dr. Dre, Teo Macero e Lee Perry, que ainda inclui multiinstrumentistas como Prince e Brian Wilson – que deve sua existência ao casamento pioneiro entre os Beatles e George Martin. São dois legados diferentes que se misturam, mas igualmente importante para a cultura atual: o do grupo e o do produtor.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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