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Jerry Lewis foi o primeiro a entender o que era um nerd

Alexandre Matias

20/08/2017 19h03

Quem hoje encontra prateleiras inteiras de quadrinhos nas livrarias, discute ficção científica em festivais dedicados ao tema, compra brinquedos que trata como obras de arte e endossa produções cinematográficas bilionárias de antigas editoras de super-herói não sabe o débito que tem com Jerry Lewis. Mais que um dos grandes humoristas norte-americanos do século passado e um popstar no sentido clássico do termo, o ator e diretor que morreu neste domingo também foi o primeiro nome a dar voz a um personagem calado na maioria das histórias. Bem antes de Stan Lee, Robert Crumb, George Lucas ou Daniel Clowes, foi Lewis quem identificou e encarnou um novo protagonista que surgia nos cantos escuros da então novíssima cultura pop: o nerd.

A partir do meio do século 20, feios tímidos, CDFs que não tiravam a cara dos livros e adolescentes com dificuldades de traquejo social encontraram na cultura popular produzida para as massas refúgios onde poderiam se recolher do campeonato de disputas sociais da puberdade. Entre revistas em quadrinhos, livros e filmes de ficção científica e fantasia, desenhos animados, programas de rádio, uma incipiente pornografia, LPs e compactos e jogos de tabuleiros, uma nova tribo se reunia longe do desfile de popularidade que a juventude se tornara. Jerry Lewis entendeu aquele novo público quase instintivamente, criando um personagem inédito para a cultura pop.

Bobo, desajeitado e ressabiado, Lewis não tinha um único personagem, encarnando diferentes tipos que sempre encaixavam-se no seu tipo de humor, que ao mesmo tempo era corporal e infantil. Seu jeito desengonçado de se mover, os movimentos caricaturais de seu rosto e a voz mole (e aqui vale um salve para o dublador Nelson Batista, falecido em 1997, que abrasileirou perfeitamente a fala de Lewis nas sessões da tarde da vida) forjavam aquele novo tipo social, que apesar da ascendência circense do palhaço, devia mais à primeira geração de ouro dos desenhos animados. O nerd desenhado por Lewis era um herdeiro direto e humanizado de Mickey Mouse, o Gato Félix, Pernalonga e Picapau.

Ao contrapor-se ao sub-Frank Sinatra Dean Martin, esta caricaturização ficava ainda mais evidente. Dean Martin era o galã de fala mansa, que chegava fácil nas moças e sempre saía-se bem usando seu charme e papo furado. Jerry Lewis não tinha essa facilidade. Enfeiava-se para mostrar como nem tudo era moleza quase saía-se bem era através da doçura ou da inteligência. Na hora de falar gaguejava, na hora de ser firme, retraía-se.

Seu grande momento, claro, é O Professor Aloprado, obra-prima que dirigiu em 1963, ao adaptar O Médico e o Monstro para a universidade. Ao vestir-se com o nerd mais caricato possível, o professor Julius Kelp, Lewis cria uma fórmula que o transforma em um galã, o narcisista Buddy Love, que muitos imaginaram ser uma crítica a seu velho comparsa de filmes, Dean Martin. Mas era uma autocrítica: Lewis sabia que se ele fosse o astro bem sucedido que gostariam que ele fosse, se tornaria um sujeito tão desprezível quanto aqueles ídolos juvenis que desprezara.

E assim ao mesmo tempo em que consagrava um arquétipo próprio do século vinte, carregava uma horda de fãs que não apenas riam dele, mas também de si próprios, ao se identificarem naquele personagem ímpar, que tornou-se molde para inúmeros ícones posteriores. De coadjuvantes célebres como Spock, C3PO, Dana Scully, Carlton Banks, Lisa Simpson, Ross Geller, Willow Rosenberg, Hiro Nakamura e Cameron Frye a protagonistas de A Vingança dos Nerds, Ghostworld, Freaks & Geeks, American Pie, The It Crowd, Superbad, Mr. Robot, Big Bang Theory e Silicon Valley, gerações inteiras foram influenciadas pela criação cinematográfica de Lewis.

A força de sua influência pode ser resumida em uma cena que não tem nenhuma participação direta sua, mas que conecta nerds de diferentes gerações através da cultura pop. Em uma cena do clássico seriado Freaks & Geeks, o personagem de Martin Starr, Bill Haverchuck, um nerd arquetípico, está em mais uma crise pessoal ao descobrir que sua mãe está saindo com seu professor de educação física. Ao som de "I'm One", do grupo The Who (que abre com os versos "Sou um perdedor/ Sem chance de ganhar"), ele faz um sanduíche e vai assistir TV onde se encontra com o Garry Shandling e conecta-se com ele através do humor, fazendo-o esquecer momentaneamente de sua vida medíocre e conectando-o com o sublime.

Tenho certeza que muitos tiveram uma conexão parecida com Jerry Lewis. Afinal, ele foi um dos primeiros a ver que aquelas pessoas precisavam de companhia, de reconhecimento, de atenção. Eu mesmo não posso deixar de de agradecê-lo. Obrigado, Jerry Lewis.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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