Com um único episódio de Twin Peaks, David Lynch revoluciona mais uma vez a cultura contemporânea - sem spoilers!
Alexandre Matias
26/06/2017 14h07
O oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks, que já está disponível no Netflix brasileiro, é um marco tanto da história da arte quanto do entretenimento. David Lynch empurrou o público em uma hora exasperantemente bela em que até a noção de tempo e o fôlego se perdia com o passar das cenas. Se cenas dos episódios anteriores desta temporada, como a da caixa de vidro, a do espaço sideral e a do bar sendo varrido, deixaram todos impressionados com a maestria e a ousadia do diretor em reger nossa expectativa como se fôssemos cobaias em um laboratório, neste novo episódio Lynch mostrou que não está pra brincadeira mesmo. E que ele não é um mestre do cinema, o cinema é só sua ferramenta, seu veículo. David Lynch é um Mestre do Tempo.
Recomendo a qualquer um a atravessar esta hora de explosões e implosões psicológicas e físicas mesmo sem nunca ter assistido nenhum episódio. Mesmo sem ter a menor vontade de saber o que é Twin Peaks. A experiência de assistir ao capítulo chamado "Got a Light?" ("Tem fogo?", numa tradução informal) é transcendental mesmo que você não entenda o contexto. E nem estou falando do contexto da série – e sim do contexto de um seriado de televisão em 2017. Imaginar que um executivo de uma emissora de TV tenha concordado em bancar este momento solene mexe com a nossa esperança sobre a possibilidade de nossa cultura sair da estagnação repetitiva que vivemos desde que a cultura pop atingiu escala industrial.
As cenas vão sendo apresentadas uma atrás da outra sem a menor cerimônia, sem a mínima preocupação de revelar algo (embora nos dê a nítida sensação de estarmos vendo várias revelações) ou de que alguém as entenda. Lynch entrou numa magistral espiral de luz e som que conquista pela beleza estética ao mesmo tempo em que provoca sentimentos desconfortáveis em diferentes escalas. Perguntas críticas à nova temporada da série (quando Cooper vai voltar a si? De onde veio Dougie? Quem é Richard Horne? Cadê Audrey? O que é aquela caixa? O que está acontecendo na cidade de Twin Peaks?) tornam-se minúsculas comparadas aos questionamentos erguidos nesta exuberante hora de surrealismo abstrato sombrio: Existem outras dimensões? Alguém está nos observando? De onde vem o Mal? Como abrimos a caixa de Pandora da humanidade? O que está acontecendo – em tudo?
O oitavo episódio aprofunda-se em questionamentos artísticos provocados pelo diretor em seus inúmeros filmes incompreensíveis, como Eraserhead, Cidade dos Sonhos, Estrada Perdida, Império dos Sonhos. Se Twin Peaks parecia conversar com a linguagem da TV tradicional, ela agora foi para além do mero entretenimento para as massas. Me refiro à Arte com A maiúsculo, aquela que inspira reflexões sobre nossa própria existência. Em uma hora de televisão – com direito a (microspoiler, vai) cinco minutos de Nine Inch Nails -, Lynch reinventa o medo, a expectativa, o mau agouro, a esperança, a violência, a agressividade, a noção de realidade.
Intercalando cenas coloridas com cenas em preto e branco, este episódio mais recente da série sozinho já é a hora de televisão mais ousada do entretenimento moderno. É uma pintura em movimento que confronta nossa própria noção de ser. Se na primeira vinda de Twin Peaks, Lynch mostrou que a televisão podia ser menos didática, mais complexa e não precisava propriamente agradar para atingir seu público, com "Got a Light?" o diretor norte-americano pode ter aberto um mundo de possibilidades para o entretenimento dos próximos anos – mostrando para os novos autores que, sim, eles podem fazer arte sem necessariamente pensar em público, em audiência e em números. Porque, no fim, é a arte que fica.
E agora ficamos duas semanas sem nenhum novo episódio. Até lá, o que pode acontecer? Que época para se viver!
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.