O que Renato Russo acharia do Brasil de 2016?
Alexandre Matias
29/11/2016 19h35
"Acho que, além da insatisfação com a manutenção das desigualdades sociais, certamente ele reagiria ao avanço da cultura do ódio, da escalada de violência – virtual e real", me explica o jornalista Carlos Marcelo, autor da biografia Renato Russo – O Filho da Revolução (Ed. Planeta), quando pergunto o que o vocalista do Legião Urbana, que morreu há vinte anos, acharia do clima belicoso que tomou conta do Brasil em 2016. "Renato sempre fazia questão de condenar de forma veemente o fascismo, e acredito que estamos vivendo tempos de comportamentos que se aproximam desse ideário pernicioso. Em síntese: ele não precisaria atualizar a letra de 'Perfeição', tudo que está lá continua valendo."
Realmente, a letra da canção de 1993, carro-chefe do disco O Descobrimento do Brasil, conversa bastante com os ânimos acirrados e a frustração com o status quo deste ano:
"Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade.
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã.
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
(A lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão.
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso – com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção"
A nova edição da biografia, lançada originalmente em 2009 e reeditada com mais informações este semestre, conversa de forma bizarra com o país deste ano, especificamente ao revelar que Renato era colega de classe do ex-ministro Geddel Vieira, pivô da saída do ministro da cultura do governo Temer, Marcelo Calero. O livro conta que Geddel queria entrar para o grupo de estudos de Renato Russo para conseguir uma nota melhor, mas o futuro vocalista do Legião vetou o futuro político, na época conhecido pelos colegas pelo apelido de "Suíno", no mesmo instante, reforçando que "ele é in-su-por-tá-vel!" (leia a íntegra deste trecho no final do post).
Pelo que o biógrafo lembra, era o único futuro político com quem Renato conviveu quando ainda morava em Brasíia. "Outras personalidades da música brasileira passaram por Brasília e, mesmo sem ter convivido diretamente com Renato quando moraram lá, também passaram por um processo de transformação na capital: caso de Sergio Britto, dos Titãs e, especialmente, de Ney Matogrosso e Paulo Ricardo. No livro, eu narro a passagem dos três por Brasília. Sem contar, claro, Herbert Vianna, Bi Ribeiro, toda a Turma da Colina", como era referido o grupo que deu origem à primeira geração de bandas de rock da cidade.
A nova edição do livro aprofunda-se, principalmente, nos últimos anos de vida de Renato Russo, que morreu em 1996. "Me impressionou o processo de criação de seus dois discos solo, ambos meticulosamente planejados por Renato, a dificuldade para finalização do disco A Tempestade, quando Renato já estava bem doente, e também algumas canções que passaram meio batidas quando foram lançadas, a exemplo de "Celeste" – parceria com Marisa Monte, gravada pela Legião em A Tempestade como "Soul Parsifal" – e "La Maison Dieu", uma das faixas do disco Uma Outra Estação, de letra fortíssima – 'Eu sou a pátria que lhe esqueceu/ O carrasco que lhe torturou…' – , cantada em cima de uma base de blues em mais uma interpretação antológica do Renato. A entrevista com Marisa Monte, na qual ela fala que adora o disco póstumo O Trovador Solitário e relembra passagens de sua amizade com Renato, me impressionou. E o depoimento da mãe dele, que entrevistei novamente e me narrou como soube da morte do único filho, me emocionou. Tentei passar essa emoção no último capítulo da nova edição." Além disso, há vasta iconografia sobre o artista, como algumas das imagens neste post.
Carlos Marcelo concorda quando comento sobre a singularidade de Renato Russo na história de nossa cultura. "É uma figura ímpar na música pop brasileira – não consigo recordar de ninguém, com exceção de Roberto Carlos, que tenha permanecido no topo por tanto tempo. Mesmo os dois grandes roqueiros brasileiros – Raul Seixas e Rita Lee – e os grandes medalhões da MPB – Gil, Chico, Caetano, Milton – tiveram seus altos e baixos", conta o jornalista. "Renato conseguiu algumas façanhas inigualáveis: emplacar uma canção – 'Faroeste caboclo' – de nove minutos no topo das paradas, fazer o Brasil redescobrir a música italiana depois do lançamento do disco Equilíbrio Distante, fazer de uma regravação do Menudo – 'Hoje à Noite Não Tem Luar' – mais um sucesso radiofônico, apresentar às novas gerações o 14 Bis com a música 'Mais Uma Vez'… E isso aconteceu pela combinação única de lirismo e energia, performance e espontaneidade. Como ele cantava, 'é sangue mesmo, não é mertiolate"'.
Pergunto sobre o material do grupo que ainda não foi lançado oficialmente: entre músicas inéditas a íntegras de shows, ensaios e versões alternativas, é farto o material do grupo que circulava em fitas cassete desde os anos 80 até em sites de download atualmente. "Existem muitas gravações que circulam pela internet", lembra Carlos Marcelo, Há, por exemplo, registros de jams durante ensaios no Rio para as turnês dos discos As Quatro Estações e V que são bem interessantes. Mas, mais do que os registros piratas, acho que seria interessante assistir a um documentário apenas com imagens de shows da Legião. Seria uma experiência muito forte."
Renato Russo – O Filho da Revolução seria uma ótima base para este material, Carlos Marcelo inclusive foi consultor de roteiro do filme Somos Tão Jovens, sobre os anos de Renato Russo antes do surgimento da banda. "Acho que o meu livro não comporta uma versão audiovisual nos moldes de um longa-metragem – como disse o próprio Vladimir Carvalho, diretor do documentário Rock Brasília – A Era de Ouro, depois de ler a primeira edição: 'Carlos, você não escreveu um livro, fez um documentário de seis horas de duração'. Mas ainda acho que falta um documentário exclusivamente sobre Renato e a Legião, com ênfase no resgate da visceralidade das performances ao vivo. Mostrar na tela a tensão do inesperado, pois nenhum show da Legião foi igual a outro. Quem viu um show da Legião passou por uma experiência única. E intensa, às vezes perturbadora. E as novas gerações de fãs, lamentavelmente, não tiveram essa chance."
Abaixo, o trecho da biografia em que Renato Russo veta o futuro político Geddel Vieira de participar de um grupo de trabalho na escola:
"A turma do Marista tem que preparar apresentação relacionada à música. De imediato, Renato avisa:
— O tema do meu grupo vai ser a história do rock.
Rigoroso na hora de selecionar os colegas de grupo, ele convida Maria Inês Serra e mais dois ou três felizardos que se mostraram dispostos a executar a tarefa como ele planejaria. Tinha gostado de trabalhar com Inês em uma pesquisa sobre cantigas de roda — o esforço alheio representava fator decisivo para a escolha. Deixa claro (a ponto de despertar antipatia e criar fama de chato) que não carregaria ninguém nas costas. Apesar dos pedidos de colegas como Geddel Quadros Vieira Lima para entrar no seu grupo pela garantia de notas altas na avaliação final. Filho do político baiano Afrísio Vieira Lima, o gordinho Geddel era um dos palhaços da turma. Chegava no colégio dirigindo um Opala verde, o que despertava atenção das meninas e a inveja dos meninos — que davam o troco chamando-o de "Suíno". Tinha sempre uma piada na ponta da língua; as matérias, nem sempre.
— Eu vou ser político!
O jeitão expansivo garantia popularidade entre os colegas, mas não unanimidade. "Ele é in-su-por-tá-vel!", justifica Renato para Maria Inês, dividindo as sílabas de forma enfática, ao sentenciar a proibição da entrada de Geddel em seu grupo.
A preparação do trabalho consome semanas. A pesquisa, concentrada no acervo guardado por Renato em seu quarto, inclui o detalhamento de aspectos controversos da biografia de ídolos do rock. Ao estudar a trágica trajetória de Janis Joplin e Jimi Hendrix, Renato comenta com Inês:
— Como é que pode alguém se drogar para fazer música?
As tardes de pesquisa, porém, não resultam apenas em fonte de inquietação sobre os destinos erráticos das estrelas do rock. Na parte mais divertida da preparação do trabalho, Inês observa o amigo escolher um disco, colocá-lo na vitrola e iniciar o show particular. Renato canta junto, faz solos imaginários de guitarra, dedilha violão, imita os artistas que se revezam no toca-discos. Reproduz o falsete de Elton John. "And I think it's gonna be a long, long time…", dubla o refrão de "Rocket Man", do cantor e pianista inglês. Também capricha no tom grave da voz para imitar Elvis Presley — sem êxito. A amiga achou que estava escutando Jerry Adriani.
Mesmo sem a parte da dublagem, estrategicamente esquecida na 303 Sul, Renato e Inês recebem nota máxima pelo trabalho. Mais: são convidados a bisar a apresentação, dessa vez no auditório do Marista, diante de alunos de outras turmas do segundo grau. Além da explanação verbal, proporcionam aos colegas uma experiência audiovisual. Coladas em cartolinas, fotografias de ídolos do rock (selecionadas do acervo particular do líder do grupo) são exibidas enquanto o auditório é sacudido por trechos de clássicos do gênero, cuidadosamente pinçados e gravados em fitas cassete. Para aumentar a dramaticidade, Renato faz questão de resumir em frases de efeito, pronunciadas em tom incisivo, os pontos-chave das ideias defendidas no trabalho. Terminada a apresentação, começa o debate. Uma das colegas critica o rock e defende a MPB como porta-voz dos anseios da juventude brasileira. Diante do auditório lotado, Renato rebate:
— O rock é um movimento musical que revolucionou a música popular porque é o único gênero feito por jovens e para os jovens. Por isso, se tornou sinônimo de rebeldia.
Aplausos dos colegas e dos professores. Graças à convicção e ao conhecimento de rock, Renato passa com louvor no primeiro teste de popularidade diante de uma audiência imprevisível. Nada mau para um aluno até então notado nos corredores apenas pelas espinhas e muletas. Com ajuda de Inês, Elvis, Janis e Hendrix, Renato não era apenas mais um entre as centenas de alunos do segundo grau do Marista. Tinha deixado de ser invisível."
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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