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A doce microfonia de "Loveless", do My Bloody Valentine, completa 25 anos

Alexandre Matias

04/11/2016 04h21

Em seu clássico visionário de 1977, Bruits: Essai Sur L'Economie Politique de la Musique (Barulho: Um Ensaio sobre a Economia Política da Música), o acadêmico e teórico francês Jacques Attali usa a música como metáfora para a evolução da humanidade da barbárie rumo à civilização. O que diferencia o barulho de música é nossa capacidade de abstração – e é justamente o que nos torna, mais que humanos, civilizados. A humanidade começa a evoluir a partir do momento em que, consciente de sua capacidade de fazer barulho, começa a organizá-lo em música. O barulho é o estágio animal do ser humano, violento, que ao tornar-se música mostra sua faceta requintada, elegante, educada. Attali também explica que este ato – fazer música – antecipa uma série de mudanças políticas e econômicas que ocorrem com a sociedade, cogitando a possibilidade de que a música funcione como uma atividade presciente dos acontecimentos que se desenvolvem nesta evolução.

Este momento – a cristalização do barulho em música – dificilmente é registrado em disco, devido à natureza desta transformação, que é mais própria de shows e ensaios do que estúdios de gravação. Mas é claro que vários artistas se dispuseram a explorar esta possibilidade, registrando a transformação de frequências sonoras brutas em uma musicalidade nova, para além dos conceitos clássicos de melodia. Eruditos do início do século 20 exploraram esta transição quase sempre de forma conceitual: a orquestra de ruído do futurista italiano Luigi Russolo, os experimentos com silêncio de Marcel Duchamp, as colagens sonoras de Edgard Varèse, as peças de John Cage, a musique concrète de Pierre Schaeffer, o pioneirismo eletrônico de Karlheinz Stockhausen.

Foi na música popular que as transições mais memoráveis destes experimentos aconteceram. Da produção wall-of-sound de Phil Spector, ao free jazz de Ornette Coleman, passando pelas aventuras dos Beatles e de Brian Wilson no estúdio até gestos mais artísticos como o primeiro disco do Velvet Underground ou do Frank Zappa com suas Mothers of Invention, a vontade de registrar o momento em que algo ruidoso torna-se melódico esteve na raiz laboral do pop, dando origem a gêneros inteiros (ambient, drone, noise, industrial, no wave, glitch), até que o advento do sampler nos anos 80 – que permitia disparar sons pré-gravados como bases musicais – trouxe o ruído para a base do pop atual. Mas nenhum disco registra tão bem este momento específico quanto o influente Loveless, a obra-prima que a banda irlandesa My Bloody Valentine lançou exatamente há 25 anos, no dia 4 de novembro de 1991.

É deixar o disco começar, esperar as quatro batidas iniciais que parecem elevar a expectativa, e deixar fluir um som… Que som é esse? Um riff circular de guitarra preenche o ambiente com ondas elétricas inusitadas, frequências sonoras que dissolvem-se logo que o entra doce vocal da faixa de abertura "Only Shallow". São quantas guitarras? Que pedais são usados? Como essa gravação foi microfonada? E esse riff de abertura? Logo no início Loveless grita e sussurra, canta e berra, seduz e agride. É um meio-termo perfeito entre as grossas camadas de microfonia do Jesus & Mary Chain e a estratosfera onírica dos Cocteau Twins, criando uma sonoridade nova, completamente moderna e eterna. Vinte e cinco anos depois de seu lançamento, Loveless continua igualmente ímpar e alienígena – e, da mesma forma, envolvente e hipnóptico com há um quarto de século. Ele criou um universo musical que ninguém além do próprio My Bloody Valentine soube habitar, embora seja influência direta em algumas das principais bandas do rock alternativo nos anos seguintes (Smashing Pumpkins, Nine Inch Nails, Radiohead), além de ter sido festejado por músicos exigentes como Robert Smith e Brian Eno à época de seu lançamento.

Por toda sua extensão Loveless é um sonho tocado no último volume. O estranho assobio produzido pela forma de tocar guitarra de seu líder Kevin Shields é apenas um dos elementos únicos que definem a banda, como a onipresente parede elétrica de microfonia anestesiada, os doces vocais que sussurram no abismo, o acúmulo de instrumentos, a presença quase sutil de uma bateria montada na pós-produção, em loop eletrônico, o efeito entortado que o uso da alavanca de tremolo dá aos acordes secos e multiplicados, as eventuais ondas de ruído que parecem funcionar como abóbodas de catedrais. Músicas como a sequência final do lado A – "When You Sleep" e "I Only Said" -, a primeira música do lado B – "Come In Alone" – e a faixa que fecha o disco – "Soon" – são hinos celestiais em pele de banda de rock.

My Bloody Valentine: Kevin Shields, Bilinda Butcher, Debbie Googe e Colm Ó Cíosóig

Loveless também é o fruto perfeito do trabalho mais obsessivo da história da música pop. Kevin Shields fundou a banda em 1983 com seu velho amigo Colm Ó Cíosóig na bateria, com quem já havia tocado em outras bandas desde o final dos anos 70. A baixista Debbie Googe entrou logo após a fundação da banda, que havia partido das guitarras açucaradas do Jesus & Mary Chain rumo à sua própria sonoridade. A entrada da vocalista Bilinda Butcher mudou radicalmente os rumos da banda, quando ela começou a tocar guitarra ao mesmo tempo em que Kevin Shields começava a dividir os vocais. Aos poucos a banda assume uma sonoridade repetitiva e cheia de microfonia que seria rotulada a partir da postura de seus integrantes no palco. Mais preocupados em fazer barulho para si mesmos do que em conquistar o público, passavam a maior parte do tempo olhando para baixo – shoegazing, olhando os próprios sapatos, em inglês -, o que deu origem ao termo que definiria aquele novo gênero musical – shoegaze. O marco zero deste foi justamente o primeiro disco do My Bloody Valentine, Isn't Anything, lançado após alguns singles e EPs, em 1988. Um sucesso comercial na Inglaterra, o disco fez outras bandas inglesas como Slowdive, Chapterhouse, Swervedriver e Ride (influenciadas tanto pelo MBV quanto pelos Smiths, Jesus & Mary Chain, Cocteau Twins, Hüsker Dü, Sonic Youth, Bauhaus e Galaxie 500), se juntarem a esta nova cena, The Scene that Celebrates Itself, criada ao redor do novo gênero. O que fez Kevin Shields querer ir mais além.

E aí entra o épico parto que foi a gravação do disco. Gravado em quase vinte estúdios diferentes e com mais de uma dúzia de técnicos e engenheiros de som, Loveless gastou horas de estúdio como poucos discos na história e a lenda diz que seu preço chegou a 250 mil libras, provocando a falência de sua gravadora, a indie Creation. As histórias sobre a gravação do disco incluem vocais gravados às sete da manhã, Kevin cantando as partes agudas e Bilinda cantando as partes graves, camadas e mais camadas de guitarras superpostas e o fato de Colm não ter conseguido gravar as baterias devido a uma questão de saúde, o que fez Kevin picotar trechos de suas gravações e montar as bases rítmicas no estúdio. A gravação de Loveless também é conhecida por ter semanas gastas na gravação de um único riff, tornando constante as brigas entre Shields, os técnicos de som e os executivos da gravadora. O resultado foi um disco que transcende até mesmo o gênero criado no disco anterior, que, ao ser lançado no hoje mítico 1991, foi ofuscado pelo repentino sucesso do Nevermind do Nirvana, frustrando as expectativas de sucesso comercial da gravadora.

Isso é o de menos. A marca que o disco deixou na história da música é indiscutível. Um som que soa distante do presente mesmo 25 anos depois de gravado – e provavelmente continuará desta forma por pelo menos mais 25 anos. É um disco sem vínculos temporais nem estéticos, de uma natureza própria, que equilibra ruído e melodia de tal forma que evoca a escala geológica. Não é apenas uma banda de rock fazendo melodias doces soarem muito altas graças a experimentos no estúdio – é o som de geleiras se desfazendo, vulcões sopranos, baleias apaixonadas, do vento atravessando infinitas planícies ermas, um sentimento oceânico, bolhas de lava. O exato momento em que o ruído torna-se música, capturado. E que aponta o rumo do pop do futuro. Até hoje.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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