Uma catarse histórica chamada Novos Baianos
Alexandre Matias
13/08/2016 09h55
Acabou Chorare, disco-símbolo dos Novos Baianos, é um momento único da música pop do século passado. É o disco que saiu do encontro, no início dos anos 70, dos hippies baianos barulhentos que haviam descido para o Rio de Janeiro e o também baiano papa da nova música brasileira, que ensinou ao mundo, quinze anos antes, a importância do silêncio. João Gilberto já conhecia aqueles meninos de fama e, maravilhado com a energia que emanava do grupo, foi bater na porta da comunidade hippie que habitavam no Rio de Janeiro – e ficou. Morou por dias com aquela turma e lhes fez retomar violões, redescobrir a melodia e o sussurro do canto, além de se aprofundar em clássicos do samba de todas as épocas, entre brumas de maconha e viagens de ácido. Assim, o disco de 1972 que nasceu daquele encontro, reunia os dois maiores fenômenos musicais da década anterior – o rock e a bossa nova – num álbum ímpar, perfeito e, disseram os anos, histórico.
E foi com esta reverência que o disco foi reapresentado ao vivo no Citibank Hall nesta sexta-feira, dia 12. Foi o segundo show de um reencontro que muitos julgavam impossível (o primeiro foi em Salvador) e o primeiro de uma série de cinco apresentações que passam por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A banda está com sua formação completíssima – além dos quatro vocalistas que dividem a linha de frente no palco (Moraes Moreira, Baby do Brasil, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor), ainda trouxeram os outros dois irmãos de Pepeu (o baterista Jorginho e o guitarrista Didi) e o baixista Dadi (que parece não envelhecer), além do poeta, letrista, fundador do grupo e biógrafo Galvão. O único que não era da formação original, o percussionista Gil Oliveira, tem o DNA da banda, pois é filho de Paulinho e nasceu no sítio em Jacarepaguá que a banda foi morar depois do lançamento de Acabou Chorare.
Foi uma aula de história – e de emoção. O grupo não se restringiu ao seu disco clássico e visitou músicas que não faziam parte daquele repertório, escolhendo a nostálgica "Anos 70" ("E a razão da vida é amar! / Ah, e Beatles, viver ouvindo João, assim como John… / Deixando marcas na imagem e no som!"), que compuseram na única volta do grupo até então, no disco Infinito Circular, em 1997, para abrir e fechar o show. Foi a música que apresentou o multicolorido cenário de Gringo Cardia e trouxe os quatro vocalistas ao palco, em cima de um carro que vinha com um letreiro que exibia o nome da banda. Pendurados a partir do teto, baldes coloridos resgatados da capa do disco clássico dava um ar mais caseiro e intimista à tela tropicalista que compunha o cenário.
O show era pontualmente comentado com referências à importânca do disco e da banda na história da música brasileira, além de falar da história do disco. Festejaram a importância de Tom Zé e de João Gilberto nos dois momentos de formação do grupo (em sua origem e no disco clássico), comentaram sobre a intimidade da comunidade que haviam formado, lembraram dos momentos difíceis (por exemplo quando tiveram que morar em um carro) e de clássicos da música brasileira de sua formação, passeando por um repertório de standards, cada um na mão de um dos vocalistas: Moraes Moreira fez o público cantar "Chega de Saudade" apenas ao som de seu violão, Baby revisitou seu exercício de virtuosismo vocal em sua já clássica versão para "Brasileirinho" e Pepeu provocou uma versão instrumental jazz elétrico para "Na Baixa do Sapateiro", de Ary Barroso. Outro momento mágico da noite – o primeiro, na verdade – foi quando Paulinho entoou uma das melhores músicas do grupo fora de seu disco clássico, "Dê Um Rolê", quando fez todo todos os presentes cantarem "eu sou o amor da cabeça aos pés" em uníssono.
O público era bem mais velho, quase contemporâneo da banda, e completamente reverente. Havia gente com menos de trinta anos de idade, mas eles estavam em notável minoria. Era um show de reencontro também com o público, plenamente ciente do momento histórico que foi aquele disco e, principalmente, na história emocional de cada um. Quase todas as músicas eram cantadas por todos, os sorrisos se espalhavam pela plateia, além de saudações nominais a seus vocalistas (e gritos histéricos que chamavam por Baby), arroubos de "Bora Baêa Minha Porra" (tradicional grito de torcida de futebol baiano) e os inevitáveis "Fora Temer", que não tiveram eco no palco.
Mas era claro que a noite era voltada para 1972 e os grandes momentos foram os daquele disco. E se Paulinho brilhou nas delicadas "Mistério do Planeta" e "Swing de Campo Grande", Baby e Pepeu se reencontravam como um casal musical nos solos rasgados de "A Menina Dança" e "Tinindo Trincando", como fizeram em seu emocionante reencontro no Rock in Rio do ano passado. O único senão era a voz de Moraes Moreira, que não possui aquele antigo doce timbre e em alguns momentos soa sofrível, chegando quase a estragar "Preta Pretinha". Felizmente, num dos principais momentos da noite, ele canta num tom abaixo e sua volta por um instante a sintonizar com seu timbre do passado – e a faixa que batiza o álbum clássico foi um dos momentos mais tocantes de toda a noite.
Bem como uma surpreendente versão ao vivo para a instrumental "Bilhete para Didi", quando Jorginho deixa a bateria e assume o cavaquinho e seu irmão Didi assume o baixo elétrico, pondo os três Gomes lado a lado num chorinho elétrico meio baião que encantou os presentes. "Besta é Tu" entregou o público à catarse e "Brasil Pandeiro", a música de Assis Valente que Carmen Miranda dispensou, conseguiu tirar a audiência das cadeiras.
Porque o principal porém da noite não diz respeito ao palco e sim à disposição do público. Onde seria uma pista em que todos poderiam dançar, a casa preferiu colocar mesas e faturar com o bar, fazendo garçons zanzarem a noite inteira entre as mesas e na frente do público. O tempo todo o show pedia a participação intensa do público, contido devido a esta formação. Tomara que essa turnê possa se estender por mais datas e eles possam fazer shows abertos, ao ar livre, para as pessoas dançarem sua música imortal – que foi feita para dançar. E sambar. Ô-ô, sambar.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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