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Um enigma chamado "American Gods"

Alexandre Matias

27/07/2016 22h54

Uma das principais atrações da Comic Con que aconteceu na semana passada em San Diego, nos EUA, foi a apresentação do trailer da série American Gods, adaptação do livro de mesmo nome para a televisão, agendada para estrear ano que vem no canal norte-americano Starz. Se você não viu, assista:

Mais um teaser que um trailer – afinal, qual é a história da série? – o curta serve para duas coisas: provar que, sim, existe uma série sendo produzida e filmada, com data de estreia, e que o tom do livro original está sendo fielmente respeitado. Embora aplaudido durante o evento pop californiano, a boa recepção não é propriamente um indicativo de sucesso. Porque American Gods, o livro, também foi um enigma.

Para aqueles que descohecem a obra, American Gods – ou Deuses Americanos, lançado no Brasil quase simultaneamente à publicação original, em 2001 – é o primeiro romance do inglês Neil Gaiman, um dos principais nomes dos quadrinhos modernos. Gaiman pertence à geração que virou os quadrinhos do avesso nos anos 80, quando, ao lado de Alan Moore, Frank Miller, Grant Morrison, entre outros, trouxe a seriedade e a profundidade narrativa que tornou esta mídia uma das mais exigentes atualmente e serviu de base para as adaptações cinematográficas com super-heróis que dominam o cinema e a TV atualmente.

Gaiman entrou para os quadrinhos norte-americano quase como um convidado discreto, primeiro ao escrever a elogiada graphic novel Orquídea Negra (1987) e depois ao ressuscitar um velho personagem da DC chamado Sandman. Como seu amigo Alan Moore havia feito anos antes com o Monstro do Pântano, Gaiman resolveu reinventar o personagem do zero. O herói original havia reencarnado duas vezes, ambas inspiradas no primeiro Sandman, o folclórico deus do sono. Em sua primeira vinda, nos anos 40, Sandman era um detetive que usava uma máscara de gás porque colocava os vilões para dormir com um gás sonífero. Na segunda, nos anos 70, ele era a encarnação da própria entidade mitológica, embora caracterizado como um super-herói. Gaiman tirou o uniforme e transformou seu Sandman – ou, como passaríamos a nos referir com o tempo, Morpheus ou Sonho – num popstar gótico, com o cabelo de Robert Smith do The Cure, sobretudo e coturnos. Com este personagem, Gaiman escreveu sua obra-prima, uma série de 75 edições em que ele mistura magia, fantasia, religião, filosofia e as artes como poucos souberam fazer.

American Gods foi, por sua vez, seu maior desafio – como deixar de ser um autor de quadrinhos para assumir o papel de escritor de romances sem que sua reputação anterior decaísse? Ao mesmo tempo, ele quis preservar os elementos associados às suas narrativas, especificamente ao universo mágico de Sandman e criou uma história em que os deuses venerados pelas sociedades que formaram os Estados Unidos aos poucos são substituídos por novas divindades – deuses da tecnologia, da mídia, das drogas, da fama. O livro conta a história sobre o plano de um destes antigos deuses para fazer que as pessoas parem de acreditar nos deuses americanos – fazendo-os morrer.

O livro foi bem recebido tanto pela crítica quanto pelo público e consolidou a reputação de Gaiman, que seguiu fazendo quadrinhos e livros, além de experimentar outros formatos, como o cinema (seu quadrinho infanil Coraline já pode ser considerado um clássico da animação deste século) e a TV (escreveu histórias para o celebrado seriado inglês Dr. Who). Mas a saga para trazer American Gods para a televisão arrasta-se desde 2011, quando Gaiman lançou uma edição comemorativa de dez anos do livro com vários trechos inéditos. A série começou a ser produzida pela HBO, que abandonou o projeto em 2013. Sempre envolvido com a produção, Gaiman acompanhou a ida da série para a produtora Freemantle Media que, em 2014, pôs os produtores Bryan Fuller (de Hannibal) e Michael Green (de Kings e da primeira temporada de Heroes) para cuidar do projeto. Este originalmente começaria a ser produzido em 2015 e estrearia no fim deste ano e que agora está oficialmente anunciado para o ano que vem.

Por isso o trailer é tão importante: ele não apenas prova que a série está sendo realmente feita (enquanto fãs de Gaiman ainda se beliscam para saber se não estão sonhando) como mostra que, ao menos nas cenas exibidas, o tom do livro conseguiu ser passado para a TV. O clima gótico americano é dado por uma tensão sombria e quieta como seu protagonista Shadow (vivido pelo inglês Ricky Whittle) e seu contratante o senhor Wednesday (o Ian McShane de Deadwood) que aos poucos vão revelando detalhes do livro que seus leitores reconhecerão facilmente – desde as paisagens lindas e desoladoras a personagens importantes mostrados quase de relance, como o leprechaun Mad Sweeney (vivido po Pablo Schreiber, de Orange is the New Black e The Brink), a prostituta Bilquis (vivida pela atriz nigeriana Yetide Badaki, naquela cena), o apresentador Mr. World (o genial Crispin Glover) e a deusa da mídia vivida por Gillian Anderson (a nossa querida agente Scully, de Arquivo X). A cena com Anderson é tão rápida que ela resolveu twittar a apresentação de seu personagem, que encarna celebridades clássica, como esta:

As imagens são embaladas pela também clássica versão crua que o Nirvana para o blues ancestral de Leadbelly "Where Did You Sleep Last Night?", interpretada pela dupla Danny Farrant e Paul Rawson (Um detalhe: é a segunda vez que o Nirvana foi utilizado para apresentar uma série nova este ano – vide o teaser da Marvel para Os Defensores).

O trailer é um alívio por parecer nos dar uma certa tranquilidade sobre os rumos da nova produção, mas American Gods é um enigma. Seu tema complexo e sua história cheia de sutilezas e tramas paralelas tornava-o um azarão na corrida dos livros mais vendidos. O mesmo poderia ser dito de a maioria dos seriados clássicos deste século – as descrições das histórias de títulos como Six Feet Under, Game of Thrones, Breaking Bad, Lost, Sopranos, Walking Dead, The Wire e Mad Men não pareciam ser temas que atraíssem público e prêmios como conseguiram depois, por isso talvez este seja o melhor formato para adaptar o livro.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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