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Spielberg + Stephen King + John Carpenter = "Stranger Things" é demais!

Alexandre Matias

18/07/2016 10h36

Se ainda não aconteceu com você, provavelmente acontecerá nos próximos dias: um portal interdimensional foi aberto neste fim de semana e muitos foram levados para o início dos anos 80, presos em um delírio de oito horas que mistura as melhores qualidades da produção de Steven Spielberg, John Carpenter e Stephen King naquele período. Stranger Things, série cuja primeira temporada chegou ao Netflix na sexta passada, também tem elementos de filmes de terror como Poltergeist e Halloween, das sagas adolescentes de John Hughes e de Coppola e de clássicos pesados da ficção científica de horror, como Chamas da Vingança e Viagens Alucinantes. Mas, mais do que uma colagem de referências de tirar o fôlego, a temporada de apenas oito episódios é o alento de otimismo, pureza e bons sentimentos que precisávamos nessa trevosa segunda década do século.

Stranger Things conta a história de um grupo de pré-adolescentes de uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos que acidentalmente esbarra com o desconhecido. O sumiço de um deles é o ponto de partida para uma história de terror que fatalmente deixa vítimas, mas que é movida por sentimentos como amor e amizade, como inúmeros filmes clássicos para adolescentes dos anos 80, especialmente os filmes que tiveram o dedo de Spielberg naquele período – E.T., Goonies, Gremlins. A isso mistura-se a tensão do fim da Guerra Fria com experimentos científicos do governo norte-americano que flertam com o sobrenatural, o fantástico e o inusitado. É como se J.J. Abrams fizesse uma temporada de Fringe na escola de Freaks & Geeks ou como se Conta Comigo fosse um longo episódio do remake dos anos 80 de Além da Imaginação.

O desaparecimento do menino Will Byers (Noah Schnapp) nos ajuda a conhecer os personagens. Ele some logo após a melhor partida de Dungeons & Dragons já feita em audiovisual, capturando perfeitamente a excitação de quem joga RPG e antecipando parte do roteiro da série. Além de Will, a turma de garotos é composta por clichês dedicamente estudados: Mike (Finn Wolfhard) é o líder que começa a ter consciência de seu papel na turma, Lucas (Caleb McLaughlin) é o idealista destemperado que às vezes assume o papel de herói e o apaixonante Dustin (Gaten Matarazzo) parece ser apenas o alívio cômico do grupo, mas é também o coração que mantém a turma reunida e seu nerd mais dedicado.

A mãe de Will, Joyce (Winona Ryder, o primeiro flashback em pessoa da série), logicamente entra em parafuso, principalmente por ter certeza de que seu filho não morreu. Sua busca esbarra na rotina do delegado Jim Hopper (David Harbour, ex-Newsroom, quase homônimo de Tobe Hooper, diretor de Poltergeist) cujo passado como pai conecta-se imediatamente com a impaciência da mãe solteira. O irmão de Will, Johnathan (Charlie Heaton), serve para nos apresentar ao núcleo do segundo grau da série, tirado diretamente dos filmes de John Hughes: o Steve Harrington de Joe Keery é uma ode a todos os galãs adolescentes daquela época (embora fisicamente se pareça com o Jean Ralphio de Parks & Recriation), a Nancy de Natalia Dyer é uma reencarnação da Mia Sara de Curtindo a Vida Adoidado e sua amiga Barbara Holland é uma homenagem à Stef de Martha Plimpton em Goonies.

E, claro, há o estranho centro de pesquisas do governo liderado pelo soturno doutor Martin Brenner (Matthew Modine, o segundo flashback em pessoa), responsável pelos acontecimentos sinistros que acontecem durante a série. Embora não se esclareça com todas as letras, Brenner lidera uma série de experimentos que transformaram seu instituto em um portal para outra dimensão, além de um centro de produção de armas contra os comunistas, que ainda eram a grande ameaça internacional para os Estados Unidos daquele período. É interessante notar como Stranger Things canaliza-se com outros duas séries recentes – Fringe e The Americans – ao tratar os anos 80 como um período de tantas mudanças e novidades quanto os anos 50 e 60.

E o personagem central da trama é uma criança batizada como um número. Onze (Eleven, em inglês, vivida lindamente por Millie Bobby Brown) é o principal experimento conduzido por Brenner, que conecta-se tanto com o E.T. O Extraterrestre – veja se a cena da peruca ou a dela numa bicicleta não são citações literais da fábula de Spielberg – quanto a personagem de Drew Barrymore em Chamas da Vingança, além de ecoar a fase clássica dos X-Men nos quadrinhos, também dos anos 80. Ela é descoberta pelo grupo de meninos e os ajuda a entender tudo que está acontecendo pelos oito episódios.

A partir disso somos submetidos a uma lavagem cerebral de anos 80. São tantas citações, referências e menções que dá para gastar um texto inteiro só falando disso. Quase toda cena cita um filme, seja nominalmente (os cartazes aparecem por todo lado), seja de forma clonada, como homenagem. Há inúmeras referências a filmes de terror do período bem como uma direção de arte primorosa, que preza por buscar papéis de parede, mobiliário, roupas de cama e utensílios domésticos que pulsem anos 80 em nossa cara como um letreiro de néon. E não é nada sutil como Drive (e olha que Drive não é nada sutil) e sim escancarado como Kung Fury.

E nisso a série surfa: Walkie talkies! Gangues de bicicletas! TVs mal sintonizadas! VHS! Como conseguir informações num mundo sem internet? Ligando para um professor de ciências! Como se localizar num mundo sem GPS? Com bússolas! Como se divertir num mundo pré-digital? Com seus próprios amigos, no porão! Isso sem contar a trilha sonora: Bangles, Toto, Foreigner, Dolly Parton e até a linda utilização de "Atmosphere" do Joy Division e de "Should I Stay or Should I Go?" do Clash, que vira uma música completamente diferente.

Fora que a escolha que a Winona Ryder como uma de suas protagpnistas é a versão anos 2010 para a reabilitação de John Travolta por Quentin Tarantino nos anos 90. Ícone dos anos 90 (como Travolta era dos 70), Winona havia desaparecido de grandes papéis e voltou a dar as caras fazendo pequenos personagens (notadamente a mãe de Spock no primeiro Jornada nas Estrelas de J.J. Abrams e na ótima minissérie Show Me a Hero, do ano passado), mas ao colocá-la como protagonista fazendo um personagem completamente diferente dos que estava acostumado fez Stranger Things começar com uma alma retrô que antes de ser retrô era uma alma.

E esse é o grande segredo da série – não é apenas uma coletânea de referências, é uma história bem contada. Não é uma história nova (qual história é propriamente nova?), mas Stranger Things não cai no erro de Vinyl de achar que basta ambientar bem um período e transformar arquétipos em personagens para que as coisas funcionem sozinhas. A motivação de todos os personagens é bem definida e seus atores estão muito à vontade nestes papéis, mesmos aqueles com menor envolvimento com a trama principal (o núcleo adolescente, por exemplo, mereceria uma série própria). Só o Brenner de Mathew Modine que é mal explorado e um personagem que pode ser tão profundo quanto o Walter Bishop de Fringe vira só um vilão do Scooby-Doo. Talvez tenham guardado seus segredos para uma segunda temporada, que parece inevitável.

Inevitável? Sim, como todas as séries produzidas pela Netflix até agora, é inevitável que Stranger Things tenha uma próxima temporada. Mesmo porque este fim de semana passado foi só o começo do auê em torno de uma série que deve se tornar um pequeno fenômeno cultural nos próximos dias. Prepare-se para começar a ler mais textos sobre essa eficazmente curta temporada, que diz respeito não apenas ao nosso culto à nostalgia como a definição dos anos 80 como nova era da pureza e, principalmente, à mudança radical que está em andamento na atual produção de TV, que aos poucos começa a achar um novo rumo ao apostar em produções otimistas.

Mas será que a segunda temporada voltará a nos contar o que acontece com estas crianças, estes personagens, este laboratório, esta cidade? Porque Stranger Things tem todo o potencial para reafirmar uma tendência iniciada com American Horror Story e seguida por True Detective, de séries unidas apenas por um tema, e não por uma história. Como aconteceu antes com Além da Imaginação, A Quinta Dimensão ou Histórias Extraordinárias. E como pode estar acontecendo com Cloverfield (aliás, precisamos voltar a falar sobre isso).

Independente do que possa acontecer, esta primeira temporada já entrou no panteão pop de 2016. Assista ao primeiro episódio e veja se consegue parar de ver (antes disso repare como a abertura da série – que trilha! – mistura a fonte das edições originais dos livros clássicos de Stephen King com as letras em movimento da abertura de Viagens Alucinantes – de onde sai também o tanque de isolamento sensorial). Palmas para os irmãos Matt e Ross Duffer (que assinam como "The Duffer Brothers"), responsáveis por essa pérola.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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