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"Vinyl", "promissora" série de Jagger e Scorsese, foi cancelada. Ainda bem

Alexandre Matias

25/06/2016 11h30

E, com um curto comunicado, Vinyl foi cancelada. A série sobre os bastidores da indústria fonográfica nos anos 70 que a HBO apresentou no início do ano com holofotes e fogos de artifício foi lançada como se Mad Men tivesse um filho com Goodfellas. Ainda mais que a série vinha com a chancela de dois protagonistas daquela década – Martin Scorsese e Mick Jagger são nomes que ajudaram os anos 70 a ter a cara que conhecemos hoje. Seu criador, Terence Winter, era da equipe de Sopranos e vinha em ascensão com sua própria Boardwalk Empire. As altas expectativas foram comemoradas ainda mais logo após a exibição do primeiro episódio, com duas horas de duração e dirigido pelo próprio Scorsese, quando a HBO confirmou, embriagada no hype provocado pelo lançamento, que a série teria uma segunda temporada (mesmo que a audiência da estreia não tivesse sido tão incrível quanto esperavam). E quando esta ainda estava começando a ser desenvolvida, chega a notícia que não teremos mais Vinyl.

Foi a melhor coisa que poderiam ter feito com a série.

Assisti ao primeiro episódio e a sensação de vergonha alheia foi chocante – escrevi inclusive sobre isso. Os anos 70 são conhecidos como a década do exagero, do egocentrismo, da glamourização do sexo descartável e das drogas sintéticas, da destruição de muitos preconceitos na marra. É a década do glam rock, do folk pós-hippie, do hard rock pré-heavy metal, da soul music virando funk, do punk rock e da discoteca universal. São muitos mitos e ícones modernos que continuam vivos até hoje e fazer uma série sobre as entranhas de uma gravadora fictícia em Nova York naquele momento poderia ser o início de uma saga deliciosa, mostrando os contrastes e a fricção criativa que transformaram o rock clássico em uma fábrica de dinheiro e encubou o berço do que depois se tornaria o hip hop, a música eletrônica e o indie rock.

Usar uma gravadora como ponto de observação daquela década parecia tão apetitoso quanto assistir às transformações da década anterior a partir de uma agência de publicidade (a premissa da excelente Mad Men). O problema é que, pra começar, Vinyl usava isso apenas como pano de fundo. Misturava biografias e mitologias diferentes em uma narrativa que parecia sofrer dos principais problemas da década. Só quem se beneficiava era a trilha sonora e a direção de arte (que também sofria do exagero da década). Todo o resto era humilhantemente constrangedor.

A começar por seu protagonista. Há atores que nasceram para interpretar personagens específicos e Bobby Cannavale nasceu para viver Richie Finestra – e isso não é um elogio. O executivo da American Century é uma nulidade emocional, um vazio existencial que só poderia ser interpretado por um canastrão convicto, um ator tão convencido de sua genialidade que acha que atuar é apenas mudar as expressões com caras e bocas. Como Cannavale é mais Francisco Cuoco que Zé Wilker, seu personagem é profundo como um pires, um emaranhado de referências e clichês que mal consegue ficar de pé. É o cheirador de cocaína perfeito pra campanha antidrogas mais caricata, a caricatura de executivo de gravadora feita na cabeça de ouvintes e artistas novatos, um galã de pornochanchada. E o maior problema é que quase toda a série estava à altura desse personagem e dessa interpretação.

O elenco próximo de Finestra era tão fraco que até a insípida e deslumbrante Olivia Wilde parecia ser uma boa atriz. Outros até conseguiam limpar a sua barra (a Jamie de Juno Temple funcionava bem e o Lester Grimes de Ato Essandoh tirava leite de pedra), mas a maioria dos atores só complicava mais o cenário a cada episódio. Todos os funcionários da gravadora eram desprezíveis e risíveis, seres ainda mais caricatos que seu chefe, os artistas que aparecem em cena são personagens de desenho animado (mesmo os inspirados em artistas reais). Ninguém personificava isso melhor do que o tenebroso Zak Yankovich vivido por Ray Romano, que não se distancia em nada do Ray de sua antiga série Everybody Loves Raymond porque é o único papel que ele sabe interpretar (se é que sabe). Usando uma peruca ridícula, ele tenta ser o contraponto joepesciano à personalidade deniro do protagonista mas só consegue parecer um chorão reclamão. E quando a salvação da lavoura da história, o punk Kip Stevens, é um personagem sem graça vivido por um ator (James Jagger) que parece ter conseguido o papel por causa de um claro nepotismo de seu pai…

O primeiro episódio (lá vem spoilers) já prenunciava a pretensão vazia da série ao enumerar cinco ou seis grandes acontecimentos na vida de seu protagonista que poderiam render uma temporada inteira. O que pode ser mais forçado que um executivo de gravadora matando "sem querer" um radialista por causa de jabá? Pessoas correndo pelas ruas em direção a um show de rock que acabou de começar, como se a vida fosse um comercial de cerveja! E a mistura da queda do prédio do Mercer Arts Center (que realmente aconteceu) com um show dos New York Dolls usada como a metáfora mais infantil sobre o impacto do punk rock sobre a música pop talvez tenha rendido a cena mais idiota da televisão em anos, com rachaduras crescendo nas paredes do teto com efeitos especiais dignos de telenovela.

Assisti a cada um dos episódios da série na vaga esperança de encontrar algo que valesse a pena ser visto ou que ela pudesse encontrar algum rumo pelo simples fato de que eu sou obcecado pelo tema da série e realmente acredito que aquela época tem um potencial para um drama ficcional de fazer história. Mas cada novo episódio me entristecia mais pelo simples fato de que parecia mais interessante enfileirar clichês e referências do que contar uma história. O capítulo que se passa em Las Vegas é um primor estético, mas dá para acreditar que um executivo de gravadora nos Estados Unidos não soubesse que Elvis já estava decadente quando virou atração daquela cidade? Em Vinyl sim: o odiável Zak achava que iria assistir a um show do Elvis de sua adolescência antes de ele entrar no palco. Qual é a necessidade disso?

Havia um erro drástico no coração da série: a ilusão de que o punk rock foi algo inventado – ou pelo menos incubado – pelas gravadoras. Não houve um momento de revelação que um executivo viu o futuro do rock naquelas guitarras barulhentas que xingavam com raiva bandas de hard rock e de rock progressivo, do mesmo jeito que não houve um executivo – no caso, o próprio Finestra – que "pressentiu" que o Abba lotaria estádios na primeira vez que ouviu uma música do grupo sueco. Mas o caso do punk é mais complicado ainda porque Vinyl tenta contar que foi um diretor de gravadora que viu que o punk mudaria a história do rock e trouxe uma banda para melhorá-la no estúdio. A situação piora quando Finestra coloca Grimes – um cantor e compositor que veio do blues e da soul music – para ajudar o grupo a compor uma música convincente. Não faz o menor sentido.

A presença de Grimes na história parecia anunciar um aprofundamento rumo ao que ainda é visto como uma história paralela do rock mas que talvez seja mais importante para a cultura pop atual. O personagem tinha se transformado em artista com a insistência de um jovem Finestra, quando, ainda nos anos 50, dava seus primeiros passos em sua carreira nas gravadoras. Como estas empresas eram controladas pelo crime organizado naquela época, um desacerto no acordo entre Finestra e Grimes termina com uma surra neste último, que perde a voz que tinha. O reencontro do dois quase vinte anos depois daquela época, no meio dos anos 70, aproxima o executivo de gravadora ao coração da black music da época, que em pouco tempo se tornaria a força-motriz do fenômeno que foi a discoteca (essa sim, inventada por gravadoras a partir de um movimento original) e depois o hip hop. No entanto, a reaproximação dos dois torna Grimes tutor de uma banda punk, enquanto o papel de descobridor da nova cena de dance music que corria pela Nova York da época cabe a um personagem quase terciário. Aliás, uma das últimas cenas do último episódio mostrava este personagem feliz com a certeza de sua nova descoberta e parecia ser uma luz no fim do túnel da série, o fiapo de esperança que eu tinha que as coisas poderiam ser salvas.

Mas o cancelamento inesperado talvez tenha sido a melhor solução. Como vários outros momentos de esperança em tornar a série mais profunda ou menos trivial, a história da disco music inevitavelmente encontraria-se com a personalidade vazia do personagem principal de Vinyl e cairia por terra como todas as outras histórias. No final, Vinyl mostrou-se uma máquina de torrar dinheiro como eram as gravadoras daquele período – seu primeiro episódio custou nada menos que 30 milhões de dólares e outros 70 milhões de dólares foram gastos no restante da temporada. São números que nunca foram vistos na produção de uma série de TV, bem gastos em direitos autorais de músicas clássicas e em uma direção de arte que recriava cenários inteiros (como a Factory de Andy Warhol ou a casa noturna Max's Kansas City). Mas não compensa a gastança: Game of Thrones, que filma em locações externas e tem cenas com centenas de figurantes que recriam batalhas épicas, tem uma média de custo estimado de produção de 10 milhões de dólares. O último episódio desta série teve uma audiência global de mais de 20 milhões de espectadores, mais de vinte vezes mais que o carésimo piloto de Vinyl.

Por isso, não lamento o fim de Vinyl, até festejo, pois ele abre a possibilidade de alguém decidir a visitar esse período com mais dignidade. O problema agora é com a HBO, praticamente a criadora desta nova era de ouro da TV, cada vez mais à mercê da audiência de Game of Thrones e sem nenhum novo sucessor na manga. The Brink (uma alucinada paródia sobre política internacional, uma espécie de Dr. Fantástico pós-11 de setembro) também foi cancelada, True Detective teve uma segunda temporada horrorosa e Westworld (recriação do filme de Michael Crichton dos anos 70, na mão de J.J. Abrams) já foi adiada duas vezes. As esperanças da HBO desta vez receaem sobre a nova série de Sarah Jessica Parker, Divorce, que deve estrear ainda em 2016.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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