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O que falta para "Vinyl", a série de Jagger e Scorsese, ser boa de verdade

Alexandre Matias

21/02/2016 11h57

Lançada com toda a pompa, circunstância e marketing devidos, a nova série da HBO Vinyl, que reúne os talentos de Mick Jagger e Martin Scorsese para contar a história dos bastidores do mundo da música entre os anos 60 e 70, cumpriu as expectativas de mercado a ponto de ter sido renovada para a segunda temporada a partir apenas da exibição de seu piloto. Maravilha, não?

Sim, com a exceção de que seu primeiro episódio, longas duas horas dirigidas pelo próprio Scorsese, estar aquém das expectativas que a premissa dessa série parece armar.

O tema é delicioso. Uma série sobre como funcionavam as engrenagens das negociatas que tornaram possíveis obras e artistas que compõem a fase clássica da história do rock parece ser um mote perfeito, ainda mais com os dois grandes nomes envolvidos. Teria tudo para ser um Mad Men de um novo Estados Unidos, uma espécie de continuação espiritual da série protagonizada por Don Draper, que continuaria acompanhando as mudanças na cultura norte-americana – e seu reflexo na cultura mundial – a partir do hippiesmo Coca-Cola do último episódio do seriado sobre publicidade.

Vinyl começa pecando exatamente naquilo que deveria ser seu grande trunfo: um primeiro episódio dirigido por Scorsese. É triste constatar: o diretor norte-americano não apenas perdeu completamente a mão que o torna um dos grandes diretores vivos (e isso faz tempo), como está lentamente se tornando uma caricatura de si mesmo. Scorsese deixou de ser o autor de Taxi Driver e Touro Indomável em algum lugar dos anos 90 e seus filmes de lá para cá, por melhores que sejam, tornam-se cada vez mais genéricos e menos distinguíveis de outros tantos diretores atuais. Por mais que tenha feito bons filmes neste século (meus favoritos são O Aviador, de 2004, e Hugo Cabret, de 2011), ele já não tem a mesma força narrativa que nos brindou com filmes perfeitos como Os Bons Companheiros, Cassino, Depois de Horas, O Rei da Comédia ou A Última Tentação de Cristo.

Scorsese vinha desenvolvendo uma nova linguagem autoral, mais comercial e menos própria, principalmente ao dirigir documentários com alguns dos maiores nomes da história do rock (Dylan, os Stones, George Harrison), mas em O Lobo de Wall Street ele tenta contar uma história de ascensão de um fora da lei como já havia feito magistralmente em filmes anteriores e torna-se apenas repetitivo. Até este primeiro episódio de Vinyl, que vai além da mera repetição e força o episódio-filme com seus próprios cacoetes num nível muito exagerado.

A gaveta que se enche de drogas, a reunião com o cara da rádio no meio de uma orgia, a discussão com o empresário do Led Zeppelin, uma câmera que não para de girar ao redor de um promotor em uma cena específica: tudo que quer retratar os anos 70, com todos seus excessos e megalomanias, cai numa caricatura forçada, exagerada, gigantesca e umbilical. É algo parecido com que Baz Luhrmann faz em seus filmes (Romeu + Julieta e Moulin Rouge especificamente), mas sem a autoironia, sem deixar claro a consciência de estar transformando-se numa caricatura. A suja Nova York dos anos 70 não lembra as ruas escuras do clássico Mean Streets do próprio Scorsese e sim um parque temático sobre uma Nova York decadente, uma versão vitrine de shopping center do que seria uma metrópole aos frangalhos.

As cenas ao final do episódio são disparadas as piores. A bebedeira entre o protagonista e sua esposa revela toda a fraqueza do elenco, a cena do embate final com o divulgador da rádio é o Scorsese querendo parecer o Tarantino; as pessoas correndo nas ruas em direção a um show de rock é tão crível quanto um conto de fadas e a ridícula cena que encerra as duas horas do primeiro episódio é forçada até como metáfora.

No entanto, quando Scorsese conta o início da biografia de seu protagonista, no início dos anos 60 em que a maioria dos homens ainda usava terno, as coisas soam bem mais contidas – e melhores. Ao falar de como um barman se tornou empresário e começou a construir seu próprio império a partir de uma descoberta artística, o piloto parece ter sido dirigido por outra pessoa, com cenas especialmente espertas (como a da gravação do primeiro hit).

Talvez aí resida a salvação de Vinyl. Pois quando ainda está em ascensão, o Richie Finestra vivido pelo canastrão Bobby Cannavale é menos caricato, lembrando o velho Chazz Palmintieri em seu auge. Depois que ele se torna o grande executivo da American Century, sua atuação vai do risível ao insuportável, e toda sua gangue de picaretas em ternos de executivo de gravadora segue o mesmo rumo. Estou torcendo para que não aconteça isso, mas tudo indica que Zak Yankovich, vivido por Ray Romano, será o Joe Pesci deste De Niro de quinta – e estou falando do protagonista de Everybody Loves Raymond com uma peruca grotesca.

O filho de Mick Jagger, James, que vive o primeiro punk Kip Stevens, também entra nesta leva de maus atores. Seu personagem não convence nem que ele está preocupado em atuar, muito menos quando lidera sua banda de mentira, Nasty Bits, em um confronto contra o público. E o que dizer dos atores contratados para viver o Led Zeppelin? O empresário Peter Grant parece franzino perto do brutamontes original, enquanto Robert Plant soa como um elfo em vez de parecer um deus viking. Já a caracterização dos New York Dolls está ótima (à exceção da força de seu som, como vê-se ao final do episódio).

O que me faz querer continuar assistindo Vinyl é o personagem de Ato Essandoh, o blueseiro Robert Grimes. Há uma senhora história aí a ser contada, sobre como o blues, o gospel, o rhythm'n'blues e a soul music foram cruciais para que o negócio fonográfico se tornasse multimilionário ao mesmo tempo que ainda segregava racialmente músicos de empresários. E ao colocá-lo no gueto nova-iorquino em que o funk borbulha rumo à ebulição do hip hop, a série pode traçar uma genealogia musical paralela a dos clássicos do rock que igualmente interessante – e muito mais rica musicalmente.

O assunto abordado por Vinyl é de primeira. As transformações culturais que ocorreram entre as décadad de 60 e 70 já foram dissecadas em documentários, filmes ficcionais e cinebiografias, mas nunca ninguém se dispôs a olhar para dentro das engrenagens do sistema e apontar seus defeitos e vícios. Vinyl começa bem ao tratar executivos de gravadoras como gângsters recauchutados, uma história que explica sem rodeios por que um determinado artista faz sucesso e outro não, a transformação do negócio de música no culto à celebridade e a forma irresponsável e gananciosa que uma indústria inteira era gerenciada. Vinyl fala do que aconteceu há quarenta, cinquenta anos, mas também funciona como uma espécie de presságio e alegoria sobre as transformações culturais que estão acontecendo hoje.

É triste ter de dizer isso, mas felizmente a partir do segundo episódio, que vai ao ar a série passa a ser dirigida por profissionais de TV. Scorsese abandona sua megalomania de condensar o que poderia ser dito em uma temporada inteira em extensas duas horas e passa a direção para veteranos da televisão, como Allen Coulter (que dirigiu episódios de Sopranos, Roma e House of Cards), o inglês S.J. Clarkson (que dirigiu EastEnders, Life on Mars, Dexter e Jessica Jones), Nicole Kassell (diretora de episódios de The Killing e The Following) e Carl Franklin (que já dirigiu House of Cards, Leftovers, Homeland e Newsroom), além de abrir espaço para novatos como Mark Romanek (diretor de clipes de Taylor Swift, Madonna, David Bowie e Red Hot Chili Peppers), Jon S. Baird e Peter Sollett. Vamos torcer pra que eles abaixem a bola da megalomania da narrativa e consigam extrair boas atuações do elenco.

O segundo episódio da série vai ao ar neste domingo, às 23h, na HBO.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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