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A sombra da influência de Syd Barrett, que completaria 70 anos hoje

Alexandre Matias

06/01/2016 19h37

Poucas pessoas mudaram sozinhas o curso de uma época a partir de suas ideias e conceitos – e a maioria destes revolucionários solitários são artistas. São raros músicos, artistas plásticos, cineastas e escritores que com uma forma de tocar um instrumento, um tipo de narrativa contagiante ou trazendo visões pessoais cativam toda sua contemporaneidade. Nomes como Stanley Kubrick, Miles Davis, Picasso e João Gilberto trouxeram versões personalíssimas de mundo que se espalharam para toda sua época e transformaram a cultura de seu tempo sem participar de um movimento artístico, correntes ideológica, política ou estética, quase sempre inaugurando novas linguagens. E um destes nomes completa 70 anos hoje – ou melhor, completaria, caso não tivesse sucumbido às mesmas drogas que o transformaram em um ícone dos anos 60. Há sete décadas nascia na Inglaterra o menino Roger Keith Barrett, que ficou mais conhecido por seu apelido Syd e por ser o progenitor daquilo que nos referimos como música psicodélica.

Syd Barrett já teria seu lugar na história do século passado apenas pelo fato de ser o fundador do Pink Floyd. Mesmo não tendo participado dos discos mais populares do grupo inglês, sua influência é sentida em toda a carreira da banda e dois de seus principais discos – Dark Side of the Moon e Wish You Were Here – são homenagens ao legado do músico ao grupo e à amizade que fez o Pink Floyd existir.

Mas a força torta que fez o Pink Floyd extrapolar o padrão das bandas de rock inglês da época – tirando-o do meio das dezenas de bandas de blues ou rhythm'n'blues que tentavam transformar Londres em uma Chicago branca – foi a mesma que começou a retomar a autoestima da cultura inglesa num mundo em que esta havia sido ultrapassada pela norte-americana. O contato de Syd Barrett com as drogas lisérgicas – especificamente com o LSD, ainda permitido à época – fez com que ele vislumbrasse um futuro bem diferente para seu grupo, que à medida em que se distanciava da cultura hooligan chique dos mods e dos milhares de filhotes dos Rolling Stones começava a tornar a paisagem inglesa mais colorida e menos cafona. O país já tinha saído dos dias pesados depois da Segunda Guerra Mundial mas ainda pintava-se com os tons cinzentos de uma austeridade que não tinha mais eco frente à máquina de marketing que era a cultura dos Estados Unidos.

Syd começou a apontar outra direção. Pegou a Inglaterra pela mão e a levou para o final do século 19, quando contos de fada e um início de surrealismo coloriam o antigo império em que o sol nunca se punha com uma audácia e ousadia que pareciam nunca terem existido no século 20. Buscou o surrealismo inglês, o humor absurdo de escritores, pintores e dramaturgos esquecidos após duas guerras mundiais para começar a colorir a Londres dos anos 60. E aquele colorido começou a se espalhar pelo resto do planeta.

A Swinging London já estava acontecendo quando a banda de Syd Barrett apareceu. Era uma manifestação cultural que modernizava a velha capital europeia, trazendo-a para os dias de consumo frívolo e transgressões sociais da nova década. Uma série de transformações que misturava artes plásticas, rock'n'roll, drogas, a cultura mod, programas de rádio e de TV, moda e cinema e tornava a capital inglesa um ponto focal para o resto do mundo, farol de tendências e referência mundial de comportamento. Mas quando Syd Barrett e seu Pink Floyd sintonizaram-se àquelas transformações, as coisas começaram a mudar drasticamente.

Barrett apresentou a psicodelia para as massas, liderando uma banda que fugia de estereótipos rock'n'roll e experimentava jam sessions intermináveis alternando-as com canções dóceis e épicos audazes que descreviam cenas especiais, viagens no tempo, gnomos e viagens de ácido. Projetados sobre a banda, jogos de luzes gelatinosos criavam cenas multicoloridas que aumentavam ainda mais o grau das viagens sonoras do grupo. Os shows aconteciam em festivais que duravam a noite toda, precursores das futuras raves, e a banda vestia-se com roupas coloridas, cheias de franjas e babados, enquanto Syd dominava o público com sua presença magnética.

O carisma de Syd Barrett pode ser percebido nos poucos registros em vídeo que sobreviveram à sua fase na banda, quando começou a espalhar ondas tecnicolor que foram se espalhando pelo mundo, criando cenas psicodélicas em cidades como São Francisco, Los Angeles, Berlim, Paris e Nova York, além de dar origens a novos grupos e artistas no mundo todo. Essa distorção colorida da realidade influenciou até mesmo os Beatles e até hoje discute-se quem influenciou quem quando o Pink Floyd gravou seu primeiro disco no estúdio ao lado que os Beatles gravaram seu clássico Sgt. Pepper's. Graças à psicodelia difundida por Syd Barrett a música pop começou a buscar outros rumos e criar novos gêneros musicais, como o próprio heavy metal e o rock progressivo.

Mas o impacto foi muito maior que musical: a psicodelia tornou possível as transformações culturais propostas por David Bowie e Marc Bolan, programas de TV que hoje são ícones ingleses como a série O Prisioneiro e o Flying Circus do grupo Monty Python. Os quadrinhos ingleses foram influenciados diretamente por ela (e, assim, nomes como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison puderam reinventar os super-heróis nos anos 80), o culto ao Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien ganhou mais força, como a influência da obra de Lewis Carroll no imaginário inglês. Até subprodutos distantes como a acid house, a cena de Manchester dos Stone Roses e Happy Mondays, a obra do cineasta Danny Boyle, a cultura clubber e a moda inglesa foram são marcas fortes da influência de Syd Barrett na cultura inglesa e mundial. Isso sem contar a própria carreira do Pink Floyd.

Mas as mesmas drogas que abriram a cabeça de Barrett a fundiram de vez. Logo após o lançamento do primeiro disco da banda – o clássico The Piper at the Gates of Dawn, de 1967 – Barrett começou a criar problemas no palco, às vezes tocando um único acorde, às vezes sem se mexer ou não responder aos entrevistadores em programas de TV. Sua socialização foi se tornando cada vez mais comprometida e logo ele não poderia continuar na banda, sendo substituído pelo velho amigo guitarrista David Gilmour. A saída de Barrett não encerrou a relação da banda com o amigo, que continuou lançando discos (dois discos solo) com a ajuda dos integrantes do Pink Floyd mas, pouco a pouco, foi se fechando em casa e se tornando incomunicável. Largou a vida pública ainda nos anos 70, quando cortou o cabelo e começou a pintar. Morreu na Cambridge que o viu nascer, há dez anos, no dia 7 de julho de 2006. De lá para cá a família vem organizando o material do ícone psicodélico e, no aniversário deste ano, apresentou um novo site, repleto de informações inéditas (e muitas, muitas fotos, inclusive de suas telas e dos móveis que construía), que foi tão visitado em sua estreia que ficou fora do ar. É um bom fio da meada para quem não conhece o trabalho e a vida deste pioneiro psicodélico, um Ícaro moderno que queimou suas asas ao voar perto demais do Sol.

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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