Porque Júpiter Maçã fará falta
Alexandre Matias
21/12/2015 21h32
A música brasileira está de luto com a morte do músico gaúcho Flavio Basso, mais conhecido por seu pseudônimo mais famoso, Júpiter Maçã, com o qual gravou o emblemático disco A Sétima Efervescência, em 1997. Só esse disco já era suficiente para que o cantor e compositor tivesse seu nome registrado na história da música brasileira, do rock gaúcho e da psicodelia mundial, pois marcava a transição mais importante de sua carreira, quando assumia o pseudônimo como uma forma de assumir sua carreira solo.
Mas sua biografia confunde-se com a própria história do rock gaúcho e sua personalidade psicodélica era só uma das facetas de sua natureza rocker. Júpiter era dos poucos brasileiros essencialmente roqueiros, que sabia da importância de incomodar, de não ser dócil com o público ou com o mercado, de fazer essencialmente o que quisesse. Era um rock star no sentido mais clássico, fã dos Beatles, dos Stones, de Bob Dylan, dos Mutantes, do começo do Pink Floyd e da Tropicália, mas sempre bebendo em fontes diversas de diferentes fases do rock.
Abaixo uma lista de 10 momentos em que sua personalidade forte misturava-se com música, deixando um legado de inquietação, psicodelia, eletricidade e provocação.
1) TNT – "Cachorro Louco"
Foi integrante da primeiríssima formação do TNT, uma das bandas que começaram a aparecer em Porto Alegre após a explosão do punk e da new wave. Contemporâneo de artistas como DeFalla, Engenheiros do Hawaii e Os Replicantes, Flávio Basso – e seu amigo Nei Van Sória – saíram da banda antes que ela gravasse seu primeiro disco e "Cachorro Louco" é dos raros registros de Flavio cantando no TNT.
2) Cascavelletes – Demo
Flavio e Nei saíram do TNT e montaram a seminal banda Cascavelletes, que ainda contava com Frank Jorge, que depois fundaria a Graforreia Xilarmônica, em sua formação. O grupo era uma encarnação gaúcho de bandas pré-punk como Stooges e New York Dolls, entupindo suas músicas de barulho, energia e palavrões, como podemos ver no registro da hoje clássica fita cassete do grupo.
3) Cascavellettes – "Morte Por Tesão"
Neste registro vemos o jovem Flavio Basso se entregando ao palco como um deus do rock, em 1987, muito antes da psicodelia.
4) Cascavellettes – "Nega Bombom"
O grupo assinou com uma grande gravadora, mas mesmo com boa divulgação e música na novela ("Nega Bombom" tocou na trilha sonora de Top Model) não conseguiu que seu disco de estreia, Rock'A'Ula, fizesse sucesso. Mas eles circularam bem com a faixa da novela, embora não pudessem cantar seu singelo refrão na maioria das vezes porque o Brasil ainda vivia o fantasma da censura da ditadura militar. O registro acima é dos raros momentos em que o refrão é cantado na íntegra – e Flavio movimenta-se como se fosse Bobby Gillespie, do Primal Scream.
5) Cascavelletes – "Eu Quis Comer Você" no Clube da Criança
Os Cascavelletes eram tão ultrajantes que não titubearam em tocar "Eu Vou Comer Você" num programa infantil apresentado pela Angélica – e Flavio ainda pode dizer o nome da música para a futura senhora Luciano Huck.
6) Cascavelletes no Jornal do Almoço
A fama da banda fez que Flavio Basso cantasse sobre homossexualidade feminina no tradicional jornal gaúcho. A entrevista é tão improvável que parece ter sido feita nos anos 60.
7) Júpiter Maçã – "Um Lugar do Caralho"
Os Cascavelletes acabaram e ele começou sua carreira solo. Assumiu primeiro um pseudônimo em inglês – Wood Apple – em que começou a gravar folk e compor apenas com violões. Mas essa fase durou pouco tempo e logo ele retomaria a guitarra, tomaria um banho de brechó e se reinventaria com o pseudônimo em português, Júpiter Maçã. Com essa personalidade compôs esta que talvez seja a grande música do rock gaúcho, que sintetiza perfeitamente a atitude, a energia e as emoções daquele gênero ainda em formação. Se hoje o rock gaúcho ainda existe é porque Júpiter Maçã compôs "Lugar do Caralho", aqui registrada num show em Chapecó, em Santa Catarina, em 1997.
8) Jupiter Apple – "Plastic Soda"
Depois ele voltou a se chamar Jupiter Apple e gravou o disco Plastic Soda na virada do milênio, inspirado em bossa nova para exportação e música francesa. Era um disco mais introspectivo que o Sétima Eferversência, mas igualmente maluco e genial.
9) Júpiter Show
Pelos anos seguintes Júpiter vagou pelo rock independente e tornou-se uma espécie de lenda viva, sempre com diferentes namoradas, indo e voltando para a Inglaterra, falando em inglês e compondo discos que saíam com tiragens baixas. No final da década passada a MTV o convidou para apresentar um talk show e o resultado é o surreal Júpiter Show, que teve entrevistas antológicas como estas com Rogério Skylab, Wander Wildner e Thunderbird.
10) Júpiter Maçã – "Marchinha Psicótica de Sr. Soup"
Mas o palco era o lugar de Júpiter e o registro acima mostra que mesmo cantando uma letra quilométrica como a tropicalista "Marchinha Psicótica de Sr. Soup", tanto ele quanto o público não se perdiam. Esse também foi o último show dele que vi, em 2012. Devo ter visto uns 20 shows dele, todos bons – alguns excepcionais (lembro de um especificamente em 2000 ou 2001, na Borracharia ou no Alternative, na Vila Madalena, em que ele tocava baixo e teclado ao mesmo tempo, logo depois de ter descolorido o cabelo pela primeira vez).
A lista poderia continuar em outros tantos vídeos – e se alguém quiser compartilhar, linke nos comentários. Vai fazer falta, esse tal Júpiter Maçã. Que seu legado seja descoberto pelas novas gerações, portanto. Não é todo dia que morre um deus do rock.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
Sobre o Blog
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