Assisti a sete episódios de "Jessica Jones" e a Marvel acertou outra vez
Alexandre Matias
16/11/2015 06h33
Na próxima sexta, dia 20, estreia o novo seriado da parceria Marvel/Netflix, Jessica Jones. A série prenuncia as muitas novidades no estúdio Marvel para sua próxima fase, que estreia nos cinemas apenas no ano que vem, mas que já está à toda na televisão, com o seriado Agents of S.H.I.E.L.D., cuja terceira temporada estreou no mês passado na emissora norte-americana ABC. Jessica Jones dá continuidade a essa nova fase com um novo desafio que dará o tom dos próximos filmes e produções da série: a apresentação de um personagem desconhecido do público. E pelo que pude assistir da nova série – vi sete episódios sob a condição de não revelar nenhum spoiler até o dia da estreia oficial -, a Marvel acertou mais uma vez. Jessica Jones não apenas funciona como aprofunda-se ainda mais em temas que provavelmente darão o tom da nova fase da Marvel. Além de ser uma baita personagem legal – e uma série feminista.
Ela inevitavelmente conecta-se com a série anterior que o serviço de vídeos online Netflix produziu com o estúdio, Demolidor. Não apenas por se passar na mesma vizinhança – o bairro nova-iorquino Hell's Kitchen, que na realidade paralela do estúdio é tão barra pesada quanto na época em que Frank Miller ressuscitou o personagem, no início dos anos 80. O Hell's Kitchen de hoje em dia é um bairro gentrificado para executivos hipsters, mas no seriado ele é uma espécie de fim de mundo dentro da maior cidade dos Estados Unidos – cheio de criminosos de diferentes calibres e quilates, quase sempre filmado de noite, iluminado pelas fracas luzes da rua refletidas no asfalto.
Lá conhecemos a investigadora particular Jessica Jones – e a primeira cena da série é exatamente a primeira cena de sua série em quadrinhos, Alias, lançada em 2001 (sem nenhum parentesco com a série homônima de J.J.Abrams). Jessica Jones foi criada pelo autor Brian Michael Bendis e pelo desenhista Michael Gaydos no início do século e seu rascunho começou como uma variação da Mulher Aranha (de quem herdou o prenome) para depois tornar-se uma personagem nova no universo Marvel: uma ex-super-heroína que abandonou o uniforme para combater o crime para pagar as contas – ou as bebidas, como ela repete várias vezes -, abrindo um escritório para atuar detetive particular. Ela ainda tem os superpoderes que tinha quando era conhecida como Jewel ("isso é apelido de stripper", resmunga) mas prefere usá-los discretamente, para não chamar atenção.
Esta personagem está inteira no seriado. E Kristen Ritten não apenas a encarna como lhe acrescenta uma personalidade irônica e durona, mesmo que ela fuja do estereótipo clássico – e machista – da super-heroína. Ela traz uma doçura azeda parente da Mia Wallace de Pulp Fiction, um sabor desiludido que já havia flertado tanto em seu papel mais famoso (quando fazia a junkie namorada de Jesse, em Breaking Bad) quanto em outros papéis menores em outros seriados (Gilmore Girls, Gossip Girl e Veronica Mar, além de Don't Trust the B—- in Apartment 23, em que era protagonista). Mesmo a química entre ela e Luke Cage (vivido por Mike Coulter), próximo protagonista de um seriado Marvel/Netflix mas neste mero coadjuvante como barman, é intensa: pegando fogo nas cenas em que cedem à paixão, fria e cínica quando a relação trava.
Mas o humor amargo e as brigas de bar não chegam aos pés do tom grave do seriado. Como Demolidor, Jessica Jones é cru e violento, mas diferentemente do outro seriado, a violência física não é nada comparada à violência psicológica – e isso é mais uma fronteira que pode ser desbravada pela Marvel nesta nova fase. O ritmo é lento e para ser digerido aos poucos. Há cenas verdadeiramente perturbadoras, especialmente uma ligada à personagem de Erin Moriarty. E como fonte de toda essa tensão desesperadora está o ator inglês David Tennant, no papel do enigmático Kilgrave, um vilão com um dos piores superpoderes apresentados no universo Marvel. Tennant está irreconhecível no papel, longe do vivaz Dr. Who que interpretava na BBC, e pode se tornar um vilão ainda pior que Wilson Fisk, o antagonista do Demolidor.
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O teor psicológico da série é o principal indício do começo da mudança de ares da nova fase da Marvel. Jessica Jones tem ótimas cenas de ação, mas elas não são tão empolgantes quanto as cenas de tensão e desconforto. A relação entre Jessica e Kilgrave é incômoda inclusive para o telespectador e questões triviais de histórias de super-herói (como o personagem adquiriu superpoderes? Qual sua motivação pessoal? Por que ele esconde sua identidade?) ficam em segundo plano para uma questão de teor puramente dramático: qual a natureza da relação entre os dois personagens e o que aconteceu com os dois antes que começássemos a acompanhar esta história? Este tom deve se espalhar pelas próximas produções da Marvel, visto que, fora alguns novos personagens (como Doutor Estranho, Pantera Negra e Capitã Marvel – todos terão filmes na fase 3, todos desconhecidos do grande público), todos os outros heróis são velhos conhecidos. Vai ser interessante ver como esse tom tenso fará a conexão com a magia, um elemento que entra na nova fase da Marvel especificamente pelos personagens do Doutor Estranho e por Punho de Ferro, que também terá uma série coproduzida pelo Netflix.
Feminista
Além disso, Jessica Jones é uma série feminista. No talo. Ela não é apenas protagonizada por uma mulher, mas a maioria dos outros personagens também são mulheres – inclusive o vivido pela eterna Trinity de Matrix Carrie-Ann Moss, Jeri Hogarth, é uma versão feminina de um personagem que nos quadrinhos é um homem, Jeryn Hogarth. Os poucos homens da série são literalmente coadjuvantes (um deles, Luke Cage, é quase um homem-objeto), fora o grande vilão, o que diz muito sobre a natureza de gênero de Jessica Jones.
Também é a primeira produção da Marvel conduzida por uma mulher, Melissa Rosenberg, que toma conta de seu primeiro seriado depois de produzir e escrever para programas como Ally McBeal, Birds of Prey, The O.C. e Dexter. Os dois primeiros episódios da série também são dirigidos por uma mulher, S.J. Clarkson, que dirigiu episódios de House, Life on Mars, Heroes e Dexter. Não é a primeira produção da Marvel cuja protagonista é uma mulher, como disse anteriormente (Agente Carter, série da ABC, trazia a namorada do Capitão América fundando a institutição que viria ser a S.H.I.E.L.D.), mas é o primeiro título do estúdio em que uma personagem feminina com superpoderes estampa o nome da produção.
Porque mesmo com seus superpoderes, o que diferencia Jessica Jones dos outros super-heróis é justamente o fato de ela ser mulher – e fugir dos clichês rasos que toda super-heroína parece seguir. Ela não é uma gostosona de collant, não vive à sombra de um personagem masculino, não é um mero interesse amoroso de outro super-herói nem "usa seu charme e beleza" para resolver seus problemas. Mundana, Jessica Jones é durona mas insegura, atormentada por fantasmas do passado e por problemas da rotina de sua profissão. Na maior parte do tempo não parece que estamos vendo uma série de super-herói e sim um seriado policial com uma protagonista que não deixa barato.
A primeira temporada de Jessica Jones estreia na próxima sexta, dia 20, de uma vez só no Netflix – 13 episódios que devem estar disponíveis a partir das seis da manhã, no horário de verão de Brasília.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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