Uma só palavra sobre racismo e machismo em "Guerra nas Estrelas": imbecis
Alexandre Matias
25/10/2015 09h55
Comecei a escrever esse texto motivado pelos protestos que alguns estúpidos fizeram na semana passada sobre a possibilidade do personagem de John Boyega, Finn, ser um Jedi no próximo episódio Guerra nas Estrelas. Pediam boicote ao novo filme porque ele cogitava a possibilidade do principal protagonista ser negro. Outra facção de imbecis se sentiu ultrajada pela não pela chance do novo Jedi ser negro e sim de ser mulher, caso a personagem de Ridley, Rey, seja mesmo uma herdeira do clã Skywalker.
Não há meias palavras: só imbecis de primeira grandeza são intolerantes no século 21. E não estou só me referindo apenas ao preconceito contra os negros ou contra as mulheres. O século 20 é um desfile de atos de heroísmo contra todo tipo de intolerância que nos ensinou que a história da humanidade não é apenas a história de homens brancos adultos cristãos heterossexuais pais de família que escrevem os livros de história. Os preconceitos foram sendo expostos um a um, deixando visível que demonstrações de hostilidade em relação a quaisquer manifestação do outro (seja ele outro gênero, outra cor de pele, outra religião, outra ideologia política, outra orientação sexual) basicamente defendem a manutenção de um status quo que privilegia poucos em detrimento do sofrimento e da desclassificação de muitos.
A saga Guerra nas Estrelas é um dos melhores sintomas das transformações que aconteceram nesse século. Não é fácil notar hoje em dia porque vivemos em um mundo de entretenimento criado a partir do sucesso da trilogia original. Mas até o final dos anos 70 os filmes eram protagonizados por adultos. Quem estivesse na casa dos 20 anos era só um jovem secundário, universitário coadjuvante, filho dos personagens principais, mera caricatura do baby boom norte-americano dos anos 60 que começou a levar para as massas as transformações sociais que vivemos até hoje. Até que uma safra de cineastas desse baby boom começou a dirigir seus próprios filmes – e assim Guerra nas Estrelas era estrelado por três jovens com menos de 30 anos, algo improvável em qualquer filme antes de 1970.
Um destes jovens era uma mulher, uma princesa. Um personagem que desde o início da contação de histórias reflete estereótipos sobre a expectativa de uma sociedade machista em relação à mulher: delicada, indefesa, passiva, submissa, esperando seu príncipe encantado. A princesa de Guerra nas Estrelas passava longe desses clichês: Leia pegava em armas e queria estar na linha de frente do combate, enfiava o dedo na cara de quem lhe ameaçasse, se sentia claramente desconfortável com o papel de mulher objeto. Ela é um reflexo direto do feminismo dos anos 60 e responsável pela mudança na auto estima de mais de uma geração de mulheres que não se satisfaz com o papel de coadjuvante do universo masculino.
Os eventos de Guerra nas Estrelas aconteciam entre robôs e alienígenas e ninguém se perguntava qual era a cor da pele debaixo dos pelos de Chewbacca ou se ele era um ser humano ou um animal. George Lucas não foi redentor ao filmar um universo cuja rivalidade era definida entre tolerantes e intolerantes, ele apenas era um reflexo de sua época. A conotação religiosa da Força dos Jedi era só uma máscara para nos referir à índole de qualquer um. É muito fácil se deixar levar pelo lado sombrio da nossa consciência, passando por cima das personalidades alheias como tratores de convicção. A lição de Guerra nas Estrelas é justamente essa: é fácil ser mau, não é fácil ser bom.
Comecei a escrever o texto e a primeira frase que escrevi foi "é inadmissível que ainda haja racismo e machismo entre fãs de Guerra nas Estrelas", mas vi que a citação da saga de George Lucas é desnecessária, é apenas um gancho para falarmos de um dos principais problemas que vivemos neste início de século: a dificuldade de aceitação do outro, daquele que é diferente de nós – independente da classe social que pertença, do time para o qual torça, da tendência política que se alinhe, da religião que acredite.
E se você gosta de Guerra nas Estrelas e se incomoda com esse tipo de diferença, abra sua cabeça para assistir ao filme direito, porque é bem provável que você não tenha entendido nada.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.