Festival Radioca reúne em Salvador o melhor do pop independente brasileiro
Alexandre Matias
05/08/2015 22h14
(foto: Rafael Passos/Divulgação)
"Toda a vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar." Fazendo o público soteropolitano repetir um mantra sobre pontos de vista num centenário maracatu revisto elétrico, o arauto pernambucano Siba Veloso transformou o final do primeiro festival Radioca num baile de carnaval sobre aquele momento em específico. A música servia perfeitamente como metáfora para o momento que culminou na realização do evento, que reuniu mais de quatro mil pessoas no fim de semana passado na Cidade Baixa, em Salvador – e foi provada acertada a dimensão reduzida para que o evento transcorresse sem nenhum problema.
Criado a partir do heroico programa de rádio local de mesmo nome, que está às vésperas de completar oito anos no ar, o festival Radioca chamou atenção por seu porte de média estatura. Enquanto o pop brasileiro se alterna entre o gigantismo de estádios, casas de show patrocinadas e festas do peão e o espaço reduzido e intimista de casas que mal cabem uma centena de pessoas, o Radioca força uma terceira via que, embora não traga artistas conhecidos do grande público, prova que há uma produção musical brasileira que já tem público cativo e reverente, mesmo que não esteja nos grandes canais de mídia. Nomes como Siba, Apanhador Só, Cidadão Instigado e Anelis Assumpção, que fizeram parte da escalação do festival, infelizmente não aparecem na mídia como poderiam, mas isso não foi problema para seus fãs, as mais de quatro mil pessoas que apareceram no Trapiche Barnabé, na Cidade Baixa, no sábado e domingo passados – que cantaram as letras inteiras de artistas que lançaram seus novos discos há poucos meses.
O Trapiche Barnabé leva esse nome porque, de fato, foi um trapiche – um enorme casarão com amplos cômodos em que pescadores deixavam o fruto de seu trabalho no mar para depois revendê-lo no mercado. O tempo deteriorou a construção que manteve apenas suas paredes externas – incluindo uma vistosa fachada colonial – que abrigam um terreno que abriga cinco mil pessoas livremente e que diariamente é usado como estacionamento. A construção da estrutura que permitiu a realização do festival, que também foi transmitido ao vivo pela internet, reduziu bastante a área do local, permitindo um público máximo de 2.200 pessoas por noite.
(foto: Rafael Passos/Divulgação)
A redução da capacidade de público incluía a instalação do palco, uma área para os músicos e produção, banheiros, a presença de trailers vendendo sanduíches, um pequeno mercado de produtos pop locais – de camisetas a ilustrações personalizáveis – e uma agitada barraca de vendedores de discos de vinil. Ela também evitava a superlotação do lugar.
Com dimensões nada megalômanas, era fácil administrar características que normalmente transformam festivais em maratonas: o som estava bom tanto para todas as bandas quanto para o som mecânico no intervalo dos shows (sempre tocando música brasileira nova, o mote do programa de rádio e do festival), todas as apresentações começaram pontualmente no horário, quase não havia filas e o único contratempo do festival, a chuva que apareceu no início do domingo e obrigou a banda local OQuadro a fazer seu show debaixo d'água, não desanimou o público, que começou a encher o local mesmo com o temporal.
OQuadro (foto: Rafael Passos/Divulgação)
OQuadro, um grupo de hip hop de Ilhéus que já se apresentou na Europa e trabalha com o estúdio que Guilherme Arantes montou na capital baiana, foi uma das três bandas locais a se apresentar no festival. Com três MCs e uma banda azeitada, o grupo equilibra hip hop e black music com letras afiadíssimas e está pronto para desbravar o resto do Brasil.
IFÁ Afrobeat (foto: Rafael Passos/Divulgação)
O grupo foi seguido pela máquina de groove do IFÁ Afrobeat, uma das inúmeras bandas inspiradas pelo funk africano dos anos 70 que vêm surgindo nos últimos anos. Como a maioria de seus pares, o IFÁ mostra que já passou da primeira fase – calibrar os músicos, dominar o palco e chacoalhar o público – e está pronto para começar a incluir elementos de música brasileira em seu caldeirão rítmico, o que, em seu caso, é uma árdua missão que pode provocar momentos de brilho, quando o afrobeat misturar-se aos tambores da Bahia. A banda que abriu o festival no sábado, a instrumental Pirombeira, serviu de trilha sonora perfeita para a aclimatação do público que chegou mais cedo, fundindo música brasileira instrumental e jazz a gêneros musicais nordestinos.
Apanhador Só (foto: Rafael Passos/Divulgação)
Depois da IFÁ Afrobeat foi a vez dos gaúchos do Apanhador Só conquistar o público com suas músicas fofinhas, causando a primeira leva de cantos em uníssono do festival (impossível nas duas bandas anteriores, instrumentais). O grupo é nítido filhote do pop brejeiro dos Los Hermanos, mas aos poucos ameaça sair dessa sombra, trazendo um pouco de peso para sua musicalidade. Mas a predominância é por músicas contemplativas e sorridentes, especialmente as do disco anterior ao último, batizado apenas com o nome da banda, que enfatizam o uso da geringonça de percussão que montam no palco – uma bicicleta infantil com roda do tamanho normal que funciona como kit de ritmo para ser tocado de forma quase sutil.
Cidadão Instigado (foto: Rafael Passos/Divulgação)
O sábado terminou com mais uma apresentação épica dos cearenses do Cidadão Instigado, que lançaram seu quinto disco no meio do semestre passado gratuitamente em seu site oficial e que agora colhem os louros ao ouvir o público cantando músicas pesadas sobre estranhamento e desconforto. O rock clássico do grupo – influenciado diretamente por Beatles, Pink Floyd, Led Zeppelin e Raul Seixas – ficou mais pesado com o lançamento de Fortaleza, mas a banda tem desenvolvido melhor suas apresentações ao vivo, abrindo espaço para improvisos e os solos rasgados do líder da banda, o guitar hero Fernando Catatau. A primeira parte do show foi composta basicamente do disco recém-lançado e o grupo só foi tocar músicas antigas – com a homenagem a Neil Young "Homem Velho" e a sideral "Contando Estrelas" – no fim da noite, fazendo o público e a banda se esbaldar.
O segundo dia começou com a presença d'OQuadro, ao misturar rimas contundentes em português com uma força instrumental irresistível. Ao encerrar a apresentação de grupos locais no festival, OQuadro também realçou o fato de que todos os grupos baianos que lá se apresentaram estão prontos para serem descobertos pelo resto do Brasil.
Mulheres Q Dizem Sim (foto: Rafael Passos/Divulgação)
O renascido grupo carioca Mulheres Q Dizem Sim, um dos núcleos iniciais da cena que viu nascer trabalhos de nomes como Los Hermanos, Kassin e Domenico Lancelotti, fez seu segundo show na Bahia com uma mudança na formação, quando o baterista Marcelo Callado entrou no lugar de Domenico Lancelotti. A banda liderada pelo guitarrista Pedro Sá, que já tocou com Caetano Veloso e Gal Costa em discos recentes, também contou com uma participação especial, chamado o filho de Caetano, Moreno Veloso, para repetir a participação especial que fez no único show que a banda havia feito em Salvador, há vinte anos. O pop engraçadinho do Mulheres encontrou eco na plateia, que se esbaldou de dançar músicas que há décadas não eram tocadas ao vivo.
Anelis Assumpção e Russo Passapusso (foto: Rafael Passos/Divulgação)
Anelis Assumpção assumiu o palco logo em seguida e mostrou que está cada vez mais desenvolta ao apresentar seu disco Amigos Imaginários ao vivo. Afinal, ela está cada vez mais à vontade com uma banda de primeiríssima, que inclui integrantes do Bixiga 70 (Maurício Fleury e Cris Scabello, nos teclados e guitarra), a exímia guitarrista Lelena AnhaIa e uma cozinha de reggae de primeira (com Bruno Buarque na bateria, Mau Pregnolatto no baixo e o carismático Edy Trombone, no instrumento que o batiza e na percussão). Ela seduziu o público ao fundir música brasileira, reggae, música africana e o lirismo torto de suas letras (onde mais exibe a influência do pai Itamar Assumpção) e deixou o público em transe – o ponto perfeito para que o herói local Russo Passapusso (do grupo Baiana System, que também lançou disco solo no ano passado) pudesse invadir o palco com seu canto falado contagiante.
Mas o grande show do festival, foi a explosão rítmica comandada por Siba Veloso. O ex-integrante do Mestre Ambrósio largou a rabeca há dois discos para assumir a guitarra como seu principal instrumento e montou uma formação inusitada ao vivo: o percussionista e segunda voz Mestre Nico à sua direita, o baterista Antonio Loureira atrás, ao seu lado o tubista Leandro Gervásio faz as vezes do baixo e à sua esquerda o jovem guitarrista roqueiro Lello Bezerra.
Siba (foto: Rafael Passos/Divulgação)
A instrumentação elétrica, no entanto, é um cavalo de Troia para uma imersão cultural que resgata frases musicais e líricas de décadas do passado, voltando para o início do século vinte enquanto remonta tradições orais pernambucanas. O que é realmente novo no trabalho de Siba é sua apresentação no palco e a eletricidade, quando usa sua guitarra para subir do litoral nordestino em direção ao Caribe. Todas as outras referências são seculares, históricas e tornam-se vivas quando a banda está se apresentando.
Também apresentando músicas de um disco recém-lançado – o excelente De Baile Solto –, Siba primeiro apresentou-se como anfitrião de um respeitado baile popular para, pouco a pouco, desconstrui-lo primeiro em maracatu e finalmente em carnaval. Desceu a ladeira como se estivesse em sua cidade natal e puxou o público para o centro da noite, provocando cirandas e depois a folia desenfreada, naquele momento mágico em que até a chuva voltou a molhar na hora certa. Foi o único show a ultrapassar uma hora e meia de duração – e poderia ter durado mais. A sensação depois da apresentação foi de catarse coletiva, todos cansados com sorrisos nos rostos.
Um começo de festival impecável, que fez valer a aposta na qualidade em vez da quantidade ou do exclusivismo. Mesmo com apenas uma edição, o Festival Radioca já pode ser considerado um dos principais eventos do Brasil em 2015. Certamente, foi um dos grandes momentos do novo pop brasileiro este ano. A intenção do evento é tornar-se anual para seguir na mesma dimensão, trilhando um caminho sustentável para uma música em constante evolução.
(foto: Rafael Passos/Divulgação)
E se você não conhece esses artistas, siga os links espalhados pelo post para conhecê-los melhor. Aposto que irá se surpreender.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
Sobre o Blog
A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.