O Rush ri por último - e 40 anos depois chega à capa da "Rolling Stone"
Alexandre Matias
01/07/2015 17h35
E o Rush chegou lá. Uma biografia rumo à quinta década de existência com a mesmíssima formação, que forjou uma discografia invejável sob vários aspectos com um som autoral e ímpar: o trio canadense ganhou sua primeiríssima capa da revista "Rolling Stone" em pleno 2015. O feito é menor se posto em retrospecto à carreira da banda, mas funciona como ilustração perfeita tanto para dois descompassos – o do showbusiness com o Rush e o dos antigos poderes da indústria da música com a música produzida atualmente.
O Rush é o Spinal Tap da vida real – só que diferente do grupo fictício criado no pseudocumentário This is Spinal Tap (1984), de Rob Reiner, o trio canadense deu certo. Não no sentido esperado de "certo", aquele momento em que todas as qualidades esperadas de um artista convergem para sucessos incontestáveis e unânimes. Mas o grupo conseguiu sair de seu país, ganhar o maior mercado do planeta sem entrar na briga de egos do mundo do entretenimento, criou uma base sólida e fanática de ouvintes e apreciadores, lançou discos clássicos até para quem não gosta da banda e sobreviveu do próprio trabalho sem precisar fazer concessões, adaptar-se a modismos ou virar celebridades.
Afinal Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart são o avesso de celebridade: nerds musicais que piram em minúcias que vão despertar a curiosidade e o encanto de tantos outros nerds musicais. Gostam de contar histórias de ficção científica, de solos de guitarra que se misturam com teclados enquanto a bateria exibe-se quase no limite de invadir o primeiro plano e de capas de discos surrealistas. Tudo isso seria bem diferente se seu vocalista tivesse uma voz invejável ou tivesse ares de galã, mas a feiúra e a voz esganiçada de Geddy Lee – indistinguíveis do próprio Rush, parte da essência de seu DNA musical – deixaram sempre o Rush num universo paralelo seu. O que nos leva a questionamentos vagos sobre, por exemplo, o que aconteceria com o Led Zeppelin se Robert Plant não fosse um virtuose vocal, o estereótipo do "deus do rock" (como ilustrado no filme Quase Famosos) e dependesse apenas de seu carisma no palco ou o que aconteceria com o Rush se Geddy Lee fosse bonito e tivesse um timbre olímpico. Talvez o Led virasse o Black Sabbath e o Rush virasse o Queen, mas divago.
O Rush nasceu em 1968 e teve outro baterista, John Rutsey, em sua primeira encarnação, até lançar, em 1974, um disco homônimo que ficava naquele limite entre o hard rock e heavy metal que era tão popular na época e cujo lançamento é o único ponto fora da curva de toda sua discografia. Com a entrada de Neil Peart, que logo assumiu o papel de letrista da banda, o grupo começou a engatar um som mais autoral e abria um flanco para outro gênero musical em voga na época – o rock progressivo. Com esse novo direcionamento musical, o baixista Lee começou a explorar texturas musicais nos teclados e passou a usá-los nos shows, usando pedais para conseguir tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo. Fly by Night, de 1975, apresentou a banda com sua nova formação e deu início à fase clássica da banda, que depois compôs discos como a ópera-rock scifi 2112 (1976), o épico A Farewell to Kings (1977), o futurista Permanent Waves (1980) e seu maior clássico, Moving Pictures (1981), que traz hinos da banda como "Tom Sawyer" (que o público brasileiro lembra-se por causa da abertura do seriado de McGyver, Profissão Perigo), "YYZ", "The Camera Eye", "Limelight"e "Red Barchetta". Ao mesmo tempo estabeleceu um parâmetro curioso de exigência própria: a cada quatro discos lançava um disco ao vivo que fechava uma fase e obrigava o grupo a ir para a próxima em busca de novas sonoridades e novos desafios artísticos.
Como bons nerds musicais, os três integrantes do Rush queriam apenas fazer o que gostavam em vez de circular pelo jet set da época ou acompanhar as novas tendências da moda. Assim, compuseram obras épicas e gravaram discos opulentos que fundiam hard rock e rock progressivo na época em que estes dois gêneros começavam a sair do holofote, com o advento do punk, da disco music, do hip hop e da new wave, que fecharam os anos 70 enquanto preparavam o pop da década seguinte. E gravaram discos hoje considerados clássicos não foram recebidos com a festa que poderiam ter recebido se fossem lançados anos antes. E assim foram cavando sua própria trincheira, longe do nascimento da MTV e das capas da revista Rolling Stone da época – que preocupava-se mais com a maturidade dos artistas que surgiram junto com a revista nos anos 60, com bandas de rock "adulto" como Eagles e Doobie Brothers, com uma nova safra de atores de Hollywood, comediantes e artistas como Village People, Bee Gees e Cars.
E agora que a revista vende cada vez menos, dobra-se à importância do grupo numa tentativa de conseguir recuperar o tempo perdido e ser comprada pelo séquito de fãs da banda, que é cada vez maior (diferente dos leitores da revista, que só diminui). Para a banda, a capa 40 anos depois é motivo para brincar: "Atenção todos os planetas da Federação Solar", escreveram em seu site, brincando com o imaginário da ópera rock que lançaram em 1976, "Rush finalmente chegou à capa da Rolling Stone – e aconteceu bem antes do ano 2112." E assim o trio canadense pode rir por último.
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
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