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Referências escondidas na série do "Demolidor" revelam o futuro da Marvel

Alexandre Matias

15/04/2015 04h55

E aí, conseguiu matar todos os treze episódios da primeira temporada da série Demolidor da Marvel no Netflix? Se não terminou, eu imagino a fissura: a série é o melhor produto da Marvel fora dos quadrinhos e estabelece um novo patamar de qualidade para o estúdio. A estratégia de soltar todos os 13 episódios de uma temporada numa sexta-feira surtiu efeito e os fãs não desgrudaram da série após assistir o primeiro episódio. A cada novo capítulo, a série criada pelo produtor Drew Godard (que escreveu episódios de Lost e Buffy, além de dirigir o ótimo O Segredo da Cabana, de 2012) aprofunda suas garras não apenas na história do garoto que fica cego (vivido por Charlie Cox) e passa a lutar contra o crime, mas numa narrativa sombria, densa e crua, algo que nunca havíamos visto nos filmes ou séries que a Marvel até agora.

É uma decisão ousada – e acertou em cheio, além de especificamente feliz por começar justo pelo Demolidor. Foi o personagem quem começou a reinvenção não apenas da Marvel mas do mercado de quadrinhos dos anos 80. Frank Miller foi o primeiro dos novos autores de quadrinhos a abrir um novo rumo para os super-heróis ao assumir as histórias da identidade secreta de Matt Murdock. Suas histórias com o personagem no início dos anos 80 apostaram justamente num lado desagradável da luta contra o crime.

Miller começou a falar em corrupção policial, do envolvimento de políticos com o crime organizado, sobre como luminares das colunas sociais estavam diretamente envolvidos com atividades ilegais e hábitos sórdidos. Junto com estes bastidores que incomodam muita gente, Frank Miller também humanizava as brigas e duelos para além dos quadrinhos transversais e das onomatopeias engraçadas. O universo do Demolidor era de dor e violência, tanto física quanto emocional. Complete esse cenário com a obsessão do escritor pelo oriente, por artes marciais, ninjas, clãs de guerreiros mercenários do Japão medieval, samurais solitários de rígida disciplina.

Ainda há a questão da proporção. O Demolidor mora em Nova York mas não está a postos para salvar o mundo, como os Vingadores. Seu domínio é sua vizinhança, a região da Cozinha do Diabo, no coração de Manhattan. Por isso, observamos toda a ação de dentro, não por cima, como quando acontece em qualquer filme dos Vingadores. Nas histórias de Thor, Capitão América e Homem de Ferro vemos explosões e prédios desabando, mas nunca vemos civis morrendo, contagem de corpos de inocentes ou a devastação da cidade. O Demolidor assume um ponto de vista mais mundano. Mesmo seus superpoderes não são grande coisa se comparados à "armadura de ferro ou martelo de deus", referidos na própria série.

Foi a combinação destes fatores que fez das histórias do Demolidor um sucesso e que cacifaram Frank Miller a reconstruir um dos grandes ícones da rival da Marvel, quando reinventou o Batman com o maior épico de Bruce Wayne até hoje, a série Cavaleiro das Trevas, publicada originalmente em 1986. O Demolidor de Frank Miller serviu como ponto de partida para a fase de ouro dos quadrinhos dos anos 80, quando Alan Moore conduziu o Monstro do Pântano em narrativas inimagináveis, escreveu clássicos com o Super-Homem e o Batman e forjou o outro épico daquela década, Watchmen. Uma nova geração de autores e desenhistas – norte-americanos e ingleses – tomou de assalto as duas principais editoras de quadrinhos a partir do amadurecimento dos super-heróis iniciado pelo Demolidor de Miller. Não é exagero dizer que o personagem foi a fagulha que impulsionou o mercado a crescer para além das revistas mensais, consolidando um público adulto que iria consumir as novas graphic novels e, posteriormente, os filmes, numa onda iniciada a partir do Batman de Tim Burton, de 1989.

Então a adaptação do Demolidor nesta nova fase da Marvel vem coroar justamente o personagem que tornou essa mesma nova fase possível. Ao mesmo tempo em que apaga completamente o filme ridículo com Ben Affleck de 2003, um dos piores exemplos da primeira safra de filmes de super-herói deste século.

Mas vou dar um tempo para você digerir o novo seriado e enquanto isso separo aqui uma série de detalhes e dicas que a produção deste Demolidor espalhou por seus treze episódios. Enquanto você se delicia com cenas como a luta à "Old Boy" no final do segundo capítulo, o maravilhoso Rei – ainda Wilson Fisk – de Vincent D'Onofrio (seu maior papel, sem dúvida) e as cenas com ossos quebrados, assassinatos brutais e requintes de crueldade nem deve perceber pequenas sutiliezas narrativas ou cenográficas que apontam não só os rumos para uma próxima temporada da série, como para os outros seriados da Marvel e os filmes do estúdio que estrearão nos cinemas nos próximos anos.

Separei 18 referências que aparecem por todos os episódios, por isso daqui pra frente continue lendo apenas se não quiser saber do que acontece no seriado. Tentei restringir spoilers mais pesados, mas outros são inevitáveis. Fora que há tantas outras pistas que ainda podem estar escondidas…


1) O Homem Sem Medo
Por toda a primeira temporada, Matt Murdock se apresenta vestido de preto, usando a mesma fantasia inicial imaginada no arco "O Homem Sem Medo", em que Frank Miller voltou ao personagem em 1993 para contar o início de sua saga.


2) Tudo saiu dos quadrinhos
Todo episódio termina com agradecimentos a nomes que consolidaram o personagem, como Frank Miller, Brian Michael Bendis, Archie Goodwin e Gene Colan. Personagens periféricos dos quadrinhos vez por outra surgem na série, como o padre Lanton, o policial íntegro Brett Mahoney, o bandido Tusk Barrett, todos personagens de histórias anteriores com o Demolidor. Até os lugares, como a academia de ginástica Fogwell's e o bar Josie's também foram tirados do papel.


3) Van Lunt
Quando Murdock e Nelson inaguram seu escritório de advocacia, pregam um papel com seus nomes escritos sobre o nome do antigo serviço do local e é possível ler Van Lunt Real Estate Co. O personagem Van Lunt também é citado na série como sendo um especulador imobiliário, mas seu sobrenome é o mesmo de Cornelius Van Lunt, o Taurus do grupo criminoso Zodíaco. São as únicas referências ao personagem, mas podem ser só o começo da aparição do novo vilão.


4) Coruja
O personagem Leland Owlsley (vivido pelo veterano Bob Gunton, que você deve se lembrar da série 24 Horas) tem o mesmo nome do vilão Coruja, mas o último capítulo desta primeira temporada deve ter sido apenas o início do surgimento deste novo personagem… como vingança.


5) "O incidente"
Os fatos que aconteceram no primeiro Vingadores ecoam diretamente no mundo do Demolidor. A "batalha de Nova York" é manchete em um New York Bulletin colocado ao fundo da sala do jornalista Ben Urich (um clássico coadjuvante dos quadrinhos da Marvel, desta vez vivido por Vondie Curtis-Hall) e o fato é referido como "o incidente", que permitiu, inclusive, a ascensão do vilão Wilson Fisk a partir da destruição causada na cidade.


6) Elektra
A grande paixão de Matt Murdock, Elektra inevitavelmente aparecerá na série, mas por enquanto ela só foi referida como uma grega gata com quem Matt e seu amigo Foggy Nelson conheceram na faculdade.


7) Gladiador
O vilão ainda não existe, mas sua identidade anterior – Melvin Potter – aparece no seriado, ainda como funcionário de Wilson Fisk. Em sua oficina já conseguimos ver alguns elementos que se tornarão parte de seu uniforme, além das pernas mecânicas de outro vilão, Metalóide.


8) Enfermeira Noturna
A personagem de Rosario Dawson, Claire Temple, é a heroína Enfermeira Noturna, que deverá aparecer em outros seriados da Marvel com a Netflix fazendo as vezes de um Nick Fury civil e interconectando os personagens dos quatro seriados que virão (além do Demolidor teremos AKA Jessica Jones, Luke Cage e Punho de Ferro) para a conclusão no quinto seriado, reunindo os quatro heróis em Os Defensores.


9) Carl "Crusher" Creel
Um dos adversários do pai de Matt Murdock em seus tempos de ringue foi Carl "Crusher" Creel, que já havia aparecido no universo Marvel na série Agents of S.H.I.E.L.D., já com seu nome de guerra, er, Homem-Absorvente (é sério).


10) Stick
O mestre cego de Matt Murdock, que o apresenta às artes marciais e por pouco não o convoca para desenvolver melhor seus superpoderes, também dá as caras no seriado. E deve retornar em temporadas futuras.


11) Mercenário
O infame Bullseye responsável por arruinar o primeiro filme do Demolidor não aparece na série… ou aparece? A mira de um certo sniper no sexto episódio é muito precisa – além de parecer que ele carrega um maço de cartas em seu bolso.


12) Atlas
O logo Atlas que aparece em uma cena atrás de Matt Murdock é uma referência ao logo da Atlas Comics, que depois tornou-se Timely Comics e, finalmente, assumiu o nome de Marvel Comics em definitivo.


13) Serpente de Aço
Entre os grupos criminosos que atuam na Cozinha do Diabo, um deles é liderado por uma certa senhora chinesa chamada Madame Gao, que trabalha com a produção e distribuição de heroína na vizinhança. A droga vendida por Gao acompanha a marca da "serpente de aço", o primeiro aceno da série a outra mitologia que deverá ser explorada em outra série da parceria Netflix / Marvel, a série Punho de Ferro, que ainda não tem data de produção ou exibição.


14) Madame Gao
A própria Gao, vivida por Wai Ching Ho, deve ter um papel mais importante em Punho de Ferro. Em dado momento da série, ao ser perguntada se ela vem da China, a personagem ri e diz que vem de um lugar bem mais distante. O que pode ser uma alusão a Ku'n-Zi, uma das Cidades Lendárias do Céu, lugar sagrado nos Himalaias que só pode ser visitado a cada dez anos e de onde o Punho de Ferro retira suas forças. Gao pode ser a bruxa Mother Crane, governante do lugar, na próxima série.


15) Misticismo oriental
Punho de Ferro, por sua vez, deve ser uma das franquias da Marvel mais difíceis de serem apresentadas ao grande público, por misturar misticismo, alienígenas e artes marciais. Mas as sementes para começar a explicar este universo já foram lançadas no Demolidor, quando assistimos a uma cena em que Stick presta satisfação a um personagem misterioso – que supomos ser Stone, um dos integrantes do clã Chase, rival do clã Hand, onipresente nas histórias do Demolidor, Elektra e Wolverine. Outra referência a este misticismo é o misterioso conteúdo de um container referido apenas como "Céu negro", que pode ter alguma conexão também com Agents of S.H.I.E.L.D. ou com outro futuro filme da Marvel, os Inumanos (que também deve conectar-se com Agents).


16) "Nessun Dorma", de Giaccomo Puccini
A clássica ária é tocada em um dos momentos cruciais do final da temporada e reforça a importância que a trilha sonora tem no decorrer da série (repare em quantas músicas conhecidas são usadas nos 13 episódios). Sua letra, em italiano, canta "Meu mistério segue fechado comigo/ Meu nome ninguém saberá!"


17) Antes da Guerra Civil
Uma das próximas histórias a ser levadas para as telas (no terceiro filme do Capitão América, programado para o ano que vem) é a saga Guerra Civil, em que super-heróis são considerados foras da lei se não se apresentarem num cadastro do governo. Uma placa próxima a Matt Murdock em uma cena na delegacia mostra que essa ação já começou – ela avisa que "você não tem que revelar sua identidade secreta para ajudar a resolver crimes violentos". Resta saber se o vigilante mascarado da Cozinha do Inferno tem a ver com isso.


18) Stan Lee
Outra enorme mudança em relação a todas as produções da Marvel atuais é a ausência do pai de todos Stan Lee do elenco – mas ele não foi esquecido. Em vez de aparições infames ou surpresas hitchcockianas, a foto de Lee aparece brevemente enquadrada ao fundo da delegacia em uma das cenas mais tensas de toda a temporada, em seu último episódio.

Uma série espetacular, muito além do que já foi feito com super-heróis na televisão, e que estabelece um novo patamar de excelência para a Marvel. Embora as próximas séries da parceria Marvel e Netflix ainda não tenham começado a ser produzidas (AKA Jessica Jones deverá ser a única a estrear este ano), aposto que antes do fim desse semestre anunciam a renovação do Demolidor para pelo menos uma segunda temporada.

E você, já assistiu à série inteira?

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Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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