De que adianta se desconectar da internet?
Alexandre Matias
16/03/2015 12h42
Jarvis Cocker, vocalista da banda Pulp e um dos comentaristas culturais mais importantes da da virada do século, lançou o "Nu-Troglodyte Manifesto" (Manifesto Neo-Troglodita) na edição deste mês da revista AnOther, um manifesto quase grunhido contra a onipresença da tecnologia e a volta para a idade da pedra. Traduzo-o abaixo:
"Onde você pode encontrar paz?
Onde você pode encontrar silêncio total?
Escuridão completa?
Aqui.
Sem sinal de celular.
Sem wi-fi.
Sem TV.
Sem rádio.
Este é o som de verdade do submundo: (porque, sabe, estamos no submundo de verdade)
Nenhuma influência de fora.
Uma tela em branco.
Quer dizer, não exatamente em branco – olhe para essas paredes: o que você vê quando olha pra lá? Você vê rostos? Padrões? Eles não estão lá, você sabe – do mesmo jeito que não há nenhum escorpião, urso ou caçadores sobrevoando o céu à noite. O universo é aleatório: só o homem que tenta estabelecer um padrão. Fazer que possa significar algo.
Mas esses padrões não são bons o suficiente como são? Sem nenhuma interpretação? E você não adoraria poder fazer algo tão lindo quanto isso? Claro que sim. Mas ninguém fez: apenas aconteceu.
Estalagmites
Estalactites
Qual é qual?
"Tights come down" * (uma maneira crua mas eficaz de lembrar)
Essas coisas levaram 20 mil anos para se formar, sabe.
E eu pensei que eu fosse lento no trabalho…
É uma coinciência que o clube que viu nascer o grupo musical mais influente e significante do século passado chamase-se "A Caverna"?
Não acho.
E por que as melhores casas noturnas ficam em porões escuros e sombrios com tetos baixos?
Fácil:
Porque nos lembra de estar lá… De volta às cavernas, digo – vamos lá: por que você acha que era chamado de música da pedra (rock music) em primeiro lugar?
Foi aqui que tudo começou.
Um antepassado da sua família morou aqui certa vez.
O Des-Res original **
Agora é hora de voltar pra casa
Hora de voltar à fonte
Hora de escapar da tagarelice constante infinita sem sentido que lhe distrai de quem realmente você é e o que você realmente quer fazer.
Não há lugar pra pensar aqui
Lugar pra viver
Entre (cuidado com a cabeça)
Sente-se
Olhe para uma pedra
Vamos começar tudo de novo."
Jarvis clama para uma volta às raízes da natureza humana quando o homem sequer era homo sapiens, uma espécie de romantismo extremo, transformando a caverna pré-histórica em uma Arcádia bruta e animalesca. Na verdade ele canaliza uma sensação recorrente a todos nós: somos bombardeados por tantos contatos, fotos, mensagens, vídeos e links que a única solução que parece ser possível é largar tudo e fugir para vender coco na praia ou construir seu próprio chalé no campo, longe das barbaridades do século 21.
É um tema cada vez mais frequente na cultura atual – a onipresença da tecnologia em nossas vidas e a ascensão do capitalismo eletrônico criaram um híbrido distópico que reúne os piores pesadelos do século 20. Nem George Orwell em seu 1984 conseguiu imaginar uma sociedade em que as pessoas carregam câmeras e localizadores nos próprios bolsos, deixando rastros digitais por onde andam, sem nem cogitar fugir do Grande Irmão (nome de um dos programas mais populares atualmente). E nem Aldous Huxley conseguiria cogitar distrações tão inacreditáveis em seu Admirável Mundo Novo quanto as que tomam conta de nossa rotina digital, em bipes e luzes nos celulares, números que se acumulam nas redes sociais, abas abertas com todo o tipo de conteúdo disponível, de planilhas de valores a fotos NSFW.
Um dos livros mais importantes de 2013, traduzido ano passado para o Brasil, é O Circulo, de Dave Eggers (Companhia das Letras). É uma distopia disfarçada de entrevista de emprego ou comercial de departamento de RH, em que acompanhamos ascensão e queda de duas amigas no trabalho. Ambas trabalham na empresa que batiza o livro, uma startup que conseguiu ultrapassar Google e Facebook num futuro próximo ao criar um sistema de identificação que aposenta o conceito de senhas e muda nossa relação com a internet – de novo. O livro descreve o maravilhoso campus da empresa – cool, clean, hi-tech e cheio de regalias – ao mesmo tempo em que mostra que a rotina de trabalho dos funcionários se mistura cada vez mais com o tempo livre, tornando a participação social uma exigência quase compulsória. A trajetória das duas principais personagens – Annie e Mae – se diverge à medida em que nos afundamos nos segredos e inovações tecnológicas de uma empresa que tem como lemas frases como "segredos são mentiras", "compartilhar é cuidar" e "privacidade é roubo".
O Círculo é pessimista com o mesmo sorriso que as pessoas dão quando tiram selfies. Seu final assustador mostra que estamos só arranhando uma superfície de perigo, mexendo em campos minados que podem mudar completamente a história de nossas vidas.
(Pra quem já leu o livro, um agrado – viu que lançaram o SeeChange da vida real?)
Ainda mais pessimista foi o especial de natal que a série inglesa Black Mirror, produzida pela BBC, exibiu no final do ano passado. Criado pelo genial Charlie Brooker, um dos críticos culturais mais ácidos na Inglaterra atualmente, a série não conta uma história, apenas pequenos contos sobre nosso relacionamento com a tecnologia. São duas temporadas, cada uma com três episódios com pouco mais de meia hora, que contemplam a alienação, a violência, o deleite, o nojo e a opressão causada pela comunicação digital, em contos tétricos e de um humor pessimista e bizarramente hilário. O título da série é uma referência às telas que olhamos diariamente quando são desligadas, revelando um espelho negro que reflete todos nossos anseios. É o mais próximo de um Além da Imaginação produzido para o século 21 que se tem notícia.
O especial de natal, batizado de Black Mirror: White Christmas, é especialmente aterrador. Mistura realidade aumentada, implantes nos olhos, armazenamento externo de lembranças pessoais, serviços de relacionamento, inteligência artificial, prevenção de crimes, ordens de restrição. Protagonizado pelo Don Draper de Mad Men (o ator Joe Hamm), o episódio se passa num futuro próximo mas faz referências a várias tecnologias que já estão sendo usadas em nosso dia a dia. Ele apenas cogita a possibilidade de popularização destas, quando todas as pessoas usarem tudo que já é disponível hoje – além de um tiquinho de ficção científica.
Mais livros, filmes e discos (e sites e perfis em redes sociais e aplicativos e plugins) surgirão para nos alertar sobre os perigos do mundo digital, a insegurança da vida na internet, a necessidade de desconexão da rede. É uma mudança inevitável. Não dá para desplugar a internet ou voltarmos às máquinas de escrever, telefones fixos e fotos que precisavam ser reveladas sem que colocar o mundo em colapso. As vantagens da era eletrônica justificam sua existência até agora, mas precisamos aprender a usá-la.
Tiramos fotos de nós mesmos sem parar, postamos tudo que fazemos nas redes sociais, usamos aplicativos pra tudo em qualquer instante porque são novidades que nos foram apresentadas agora. Estamos nos lambuzando de tecnologia e de internet porque até outro dia tais facilidades não existiam. É como se estivéssemos gastando o que dá antes que tudo se acabe.
Mas é uma questão de hábito, uso e educação – esse é o nosso desafio para com as ferramentas digitais que estão moldando sim uma nova cultura. Não há escapatória – este novo romantismo é tão reacionário quanto o primeiro, que achava que a era industrial ia destruir uma paz no campo que só existe na cabeça de quem nunca morou no campo. Já escrevi inclusive sobre como essa venda de cocos na praia ou essa choupana rural é ilusória se isolada do resto da sociedade. Esse Walden só é possível mentalmente e talvez seja isso que Jarvis Cocker esteja pregando no manifesto neo-trogolodita: a volta para a caverna da mente.
* Duas N. do T. em relação ao texto de Jarvis Cocker: A frase "tights come down" ("calças caem") não faria sentido ao ser traduzida literalmente porque é parte de uma brincadeira fonética em inglês para decorar a diferença entre estalagmites (que saem do chão) e estalactites (que saem do teto). A expressão completa é "Mites come up, tights come down" e é traduzida literalmente como "insetos sobem, calças descem" para lembrar a direção de ambas formações a partir de seu sufixo: "mites" lembra "estalagmite" e "tight" lembra "estalactite".
** A segunda nota se refere ao acrônimo "Des-Res", usado pelo mercado imobiliário inglês para explicitar que determinado imóvel (especialmente após reformas) é uma "residência desejável" ("desirable residence", "des res").
Sobre o Autor
Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.
Sobre o Blog
A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.