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Wilco redefine o conceito de rock clássico no primeiro show em São Paulo

Alexandre Matias

09/10/2016 04h20

Imagem: Flávio Florido/UOL

Imagem: Flávio Florido/UOL

O conceito tradicional de rock clássico diz respeito a uma geração de artistas que viveu seu auge entre o meio dos anos 60 e o final dos anos 70 (incluindo um pouco dos que estouraram nos anos 50 e alguns que desbravaram os anos 80) e que até hoje, quase meio século depois, vive das glórias do passado. Entre artistas decanos decadentes e heróis sobreviventes de uma época muito louca, velhos ídolos revivem seus dias de ouro entre turnês em que reciclam músicas ancestrais para seus contemporâneos e fãs das gerações seguintes, que torram dinheiro para assistir parques temáticos ambulantes sobre seus protagonistas. O melhor exemplo desta abordagem é o festival Desert Trip, que está acontecendo neste fim de semana reunindo, na Califórnia, os líderes daquela revolução cultural – Dylan, Paul McCartney, os Stones, Roger Waters, Neil Young e Who. Os piores são rádios, coletâneas, playlists e bandas cover que insistem numa caricatura disso, preferindo "Ballroom Blitz", "Bohemian Rhapsody" e os mesmos hits gastos do Kiss e do Bachman-Turner Overdrive para se auto-afirmar como tribo numa clara tentativa de se diferenciar do resto do mundo. O rock clássico como rótulo geracional é o pai do infame roqueiro velho.

Uma abordagem mais propícia, no entanto, é a que trata o rock clássico como gênero musical. Há uma inevitável conexão com a mesma época descrita no início, mas não o compromisso com nomes, discos, músicas, e sim com uma sonoridade específica que evoluiu da colisão inicial do country com o blues que deu origem ao rock'n'roll para um tratamento mais sofisticado e musical. É este o terreno que a banda norte-americana Wilco, que apresentou-se pela primeira vez em São Paulo neste sábado, explora desde a virada do século, quando aos poucos foi largando suas raízes country (ou alt.country, como dizia-se à época) para abraçar a plenitude de um gênero musical aventureiro como os Beatles no estúdio, delicado como o auge dos Beach Boys, pesado e dramático como os vales e montanhas das guitarras de Neil Young, lírico como os arranjos e letras da The Band.

Foi a segunda apresentação da banda no Brasil este ano, após uma apresentação histórica no Circo Voador, no Rio de Janeiro, na quinta passada. O show de São Paulo perdeu para o carioca por motivos óbvios – a arquitetura da casa noturna da Lapa aproxima o público da banda de uma forma muito mais intensa e o show paulista foi dentro de um festival que contava com outras apresentações. Isso não apenas encurtou o tempo da banda no palco como não criou uma atmosfera estritamente focada no show de uma única banda. A favor do público paulista uma atenção e uma entrega muito mais fanática por parte da plateia que, no Rio de Janeiro, ficava conversando sem parar no meio das músicas.

Mas as diferenças entre as duas apresentações foram mínimas, se analisada estritamente a entrega da banda. No show de São Paulo, já familiarizado com o público brasileiro, o líder da banda, o guitarrista e vocalista, Jeff Tweedy, deitava e rolava no calor de sua recém-descoberta popularidade, pedindo para o público repetir o nome do grupo como torcida de time de futebol e entoando o "olê-olê-olê-olê Wilco, Wilco" que havia ouvido antes da banda entrar no palco. "Desculpe termos demorado tanto para vir para cá", disse sincero para o público, este completamente entregue à banda, cantando não apenas os riffs e os refrões como os cariocas, mas a imensa maioria de todas as letras. No meio do show, Jeff reconheceu César, que subiu no palco carioca para tocar com a banda, e o cumprimentou.

O show seguiu a linha de grandes sucessos da apresentação anterior e foi uma versão compacta do que assistiu-se no Rio. Fora do repertório de São Paulo, infelizmente, canções memoráveis do grupo, como "Theologians", "Ashes of American Flags" e "California Stars", mas a clássica "Either Way", "Dawned on Me", "Side with the Seeds" e "The Joke Explained" só foram tocadas no palco do Urban Stage, na região norte da cidade. Entre estas aquele desfile de clássicos que os fãs esperavam: "Via Chicago" e "Impossible Germany" logo de cara, "Heavy Metal Drummer", "Hummingbird", "Art of Almost", "Misunderstood", "Jesus Etc.", "I Got You (At the End of the Century)" e "Outtasite (Outta Mind)".

E durante a apresentação do grupo percebe-se que seu conceito de rock clássico não é temporal – e aos poucos eles vão incluindo efeitos eletrônicos, ruídos e cacofonias elétricas, microfonias pós-punk, peso metal, agressividade punk. Isso reflete-se na dinâmica da própria banda e nos papéis de cada um no palco. Jeff Tweedy é o maestro graças a seu inegável carisma, mas também pela forma como conduz a banda do sussurro ao esporro, do assobio ao solo rasgado. Um mestre guitarrista, ele é acompanhado de perto por seu fiel escudeiro John Stirratt, baixista, principal vocalista de apoio e, ao lado de Jeff, único integrante da primeira formação do grupo. A liga entre os dois é o cerne da banda, tudo que acontece no palco é construído a partir da cumplicidade explícita entre Jeff e John.

Ao lado de Jeff, o guitarrista Nels Cline é o franco-atirador da banda, que eleva o título de guitar hero a um nível de pós-doutorado. Cline sozinho é um show à parte e seus solos traçam uma conexão clara entre Tom Verlaine e Neil Young, ampliando horizontes a cada nota sangrada no palco. O guitarrista Pat Sansone – outro guitar hero – é uma espécie de arma secreta do grupo, revezando-se entre teclados, guitarra, banjo e vocais de apoio. O pulso firme do baterista Glenn Kotche certifica-se que está tudo sob controle enquanto o tecladista Mikael Jorgensen prepara a atmosfera necessária para cada canção. Isso sem contar o desfile de guitarras (são 70 instrumentos de cordas, entre guitarras, baixos e violões), um deleite para os fãs do instrumento, e o apreço pelo detalhe – se eles quisessem que ouvíssemos o som de uma agulha caindo no palco ouviríamos. O som, outro ponto alto desta pequena turnê, estava tão cristalino quanto no Rio.

Por ter sido realizado em um festival, o show teve apenas um bis (ao contrário de dois no Rio) e a banda voltou com a intensa "Spiders (Kidsmoke)", de raiz de rock alemão, em que Jeff incitou o público a cantarolar o riff explosivo, mas escolheu terminar com "The Late Greats", deixando o público em estado de êxtase após o fim do show. Cravadas duas horas de emoção intensa que lavaram a alma dos fãs que esperaram tanto tempo por esse momento. Resta saber agora o que eles irão fazer em sua última apresentação no Brasil, que acontece neste domingo, no Auditório Ibirapuera. Será que manterão o clima de grandes sucessos dos dois primeiros shows ou farão uma apresentação mais introspectiva? Ou acústica? Ou que se aproveite mais dos silêncios? Mas não importa o que fizerem: farão de forma clássica, como de costume.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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