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30 anos de "The Queen is Dead", o disco dos Smiths que reinventou o rock

Alexandre Matias

16/06/2016 07h07

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Hoje o conceito de indie é tão estabelecido – e diametralmente oposto – quanto o de roqueiro. São duas tribos enormes que reúnem inúmeros estilos musicais e classes artísticas diferentes mas que são definidos por motivações pessoais e contextos históricos. O roqueiro é o clássico rebelde, que rompe com as regras para expressar-se plenamente – fazendo muito barulho. Ele nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial praticamente junto ao conceito comercial de adolescente e sua natureza self-made era bancada por uma indústria fonográfica ainda em formação. O indie surge vinte ou trinta anos depois, motivado pela natureza de autoexpressão do punk rock mas apontando para outra direção: tímido, intimista e com baixa autoestima, preferia lamentar a própria existência ou conversar sobre o dia a dia do que criar hinos para a sua geração ou realidades paralelas. E preferia lançar seus discos por conta própria, alimentando uma geração que nasceu sob a égide do "faça-você-mesmo" do punk.

Hoje o indie rock é melhor reconhecido por sua estética, uma vez que, após grande parte dos ídolos das primeiras gerações assinarem com grandes gravadoras, o espírito empreendedor foi transferido para outros empresários à medida em que estes pioneiros cresciam em popularidade. Nomes principalmente ingleses e norte-americanos como Jesus & Mary Chain, R.E.M., Hüsker Dü, Pixies, Sonic Youth, Cure, New Order, Dinosaur Jr., Meat Puppets, Echo & the Bunnymen, Replacements, Minutemen, entre inúmeros outros, eram artistas que haviam nascido dos escombros do punk e usavam a formação baixo, guitarra, vocais e bateria para compor canções que funcionavam como crônicas sobre os sentimentos de uma geração nascida a partir dos anos 60. Nenhuma dessas bandas, no entanto, sintetizou melhor esse espírito primordial do indie do que os Smiths, principalmente ao encrustá-los nos sulcos de sua obra-prima, The Queen is Dead, que foi lançado há exatamente 30 anos no dia 16 de junho de 1986. Um disco que ajudou a fundar este novo rock que, ironicamente, fez o velho rock sobreviver por mais décadas.

Andy Rourke, Morrissey, Johnny Marr e Mike Joyce

Andy Rourke, Morrissey, Johnny Marr e Mike Joyce

Os Smiths eram uma resposta perfeita ao formato clássico de uma banda de rock, readequado ao paradigma do novo rock independente, àquela época referido como college rock. Era fundado numa dupla de compositores que dividiam seus trabalhos entre letra e música, vocais e guitarra, a exemplo de ícones do rock clássico como os Rolling Stones, The Who e o Led Zeppelin. O vocalista Morrissey era tão carismático e reverenciado quanto Mick Jagger, Roger Daltrey ou Robert Plant, mas era abertamente gay numa época em que isso ainda era tabu, era fissurado em engalfinhar-se em polêmicas de toda a natureza (vegetariano ativista e anti-Margareth Thatcher, era – e é até hoje – consultado pela imprensa britânica sobre qualquer assunto), além de um especialista em música pop (escrevia cartas apaixonadas e raivosas sobre música ao semanário NME). Mais que isso – ele mesmo um poeta romântico, evocava figuras clássicas das letras inglesas como Oscar Wilde, W. H. Auden, T.S. Eliott, Alan Bennett, Shelagh Delaney e Charles Dickens e colocava a música pop nesta linhagem que já incluía literatura, poesia, roteiros e peças de teatro, como um representante desta nobre tradição que tanto associa-se à Inglaterra.

O guitarrista Johnny Marr por sua vez era uma máquina de fazer riffs memoráveis e melodias perfeitas, mas usava a guitarra mais como escudo do que como espada, esquivando-se admiravelmente dos clichês melódicos do rock até então, evocando sensibilidades dos mods à soul music, do glam rock ao punk, reinventando completamente a forma de se tocar seu instrumento para gerações seguintes. Os dois se conheceram quando o guitarrista, então com 18 anos, procurou o endereço de Morrissey para conhecê-lo pessoalmente depois de ler a biografia sobre os New York Dolls que o futuro vocalista havia publicado por conta própria. A abordagem tinha inspiração clássica: Marr havia lido que Jerry Lleiber havia procurado o endereço de Mike Stoller depois de reconhecer seu talento, propondo parceria (Lleiber e Stoller são uma das duplas de compositores mais importantes do início da história do rock, autores de hits como "Hound Dog", "Kansas City", "Poison Ivy", "Stand By Me" e "Jailhouse Rock"). Marr chamou Morrissey para formar uma banda e no dia seguinte Morrissey concordou. O baixista Andy Rourke e o baterista Mike Joyce vieram em seguida e tinham um peso bem menor na formação do grupo, mas seguravam bem a onda o suficiente para deixar a dupla Morrissey e Marr brilhar.

E eles nunca brilharam tanto quanto em The Queen is Dead. O álbum de 1986 reunia o brilhantismo dos Smiths em diferentes níveis num conjunto de canções em que eles nunca foram tão precisos e concisos, antes ou depois. O disco era apenas o terceiro da banda, embora ela já estivesse na ativa há quatro anos, e fazia as pazes do grupo com o formato, já que eles eram bem sucedidos em singles e tivessem lançado dois discos irregulares (The Smiths, de 1984, e Meat is Murder, de 1984). Em The Queen is Dead eles equilibram a obsessão de Morrissey por temas sérios com a frugalidade de Marr para canções irresistíveis, quase divindindo didaticamente o disco desta forma graças aos dois lados do formato.

O lado A soa como os discos anteriores dos Smiths: a coesão entre as canções encontra-se mais em seu narrador cerebral do que nas qualidades pop, soando mais introspectivo e tenso. A agressiva faixa-título cogita um fim para a família real inglesa ao celebrar o dia em que a rainha é executada em público, para a alegria do vocalista. Ela começa de forma irônica, citando a música tradicional inglesa "Take me back to dear old Blighty" antes de cair no equivalente indie de "Street Fighting Man", com Morrissey ironizando o príncipe Charles e seu apego à mãe, as vazias tradições seculares ligadas à coroa britânica e a forma como a igreja e o bar enfraqueceram o cidadão inglês. "Frankly Mr. Shankly" é um ataque frontal – embora não nominal – a Geoff Travis, dono da gravadora independente dos Smiths, a loja Rough Trade, e Morrissey usa o último verso para pedir o dinheiro que sente estar sendo roubado. A devastadora "I Know It's Over" é o momento mais passional do primeiro lado e talvez o momento mais trágico da discografia dos Smiths, uma ode à tristeza e ao reconhecimento da solidão: "Se você é tão divertido, por que está sozinho hoje à noite?", comenta com (auto)desprezo o vocalista. Na triste "Never Had No One Ever", Morrissey canta sobre a solidão do fim de sua adolescência ("Quando você anda com dificuldades/ Nestas mesmas ruas em que cresceu/ Eu tive um sonho ruim/ Durou vinte anos, sete meses e 27 dias/ Nunca tive ninguém") e sobre encontrar uma paixão em alguém que não conhece. "Cemetery Gates" fecha o lado A citando lápides de escritores clássicos num encontro num cemitério, num arremedo de alegria nitidamente falso.

O lado B, no entanto, mostra suas garras pop. No hit "Bigmouth Strikes Again", o vocalista antecipa a reação da imprensa inglesa ao disco logo no título e se compara a ninguém menos que a heroína francesa Joana D'Arc, talvez o primeiro ícone do rock na linhagem dos Smiths. O riff de abertura é um dos momentos mais memoráveis da música pop nos anos 80 – e um dos melhores de todos os tempos. "The Boy with the Thorn in His Side", que havia sido lançada como single no ano anterior, é um momento ímpar na música pop em que tudo conspira para funcionar. Foi gravada originalmente como uma demo, mas o grupo gostou tanto do resultado que o lançou mesmo com menos produção que outros singles. "Vicar in a Tutu" é uma mais uma ácida crítica à Igreja Católica e é tocada como se fosse um country irônico, quase um alívio cômico antes do grande momento do disco. "There is a Light That Never Goes" é dessas músicas que mudam vidas, uma canção sobre um sentimento reprimido que contenta-se em morrer ao lado da pessoa amada em versos que foram considerados apologia ao suicídio após o lançamento do disco: "Se um ônibus de dois andares/ Bater em nós/ Morrer ao seu lado seria uma forma divina de morrer/ Se um caminhão de dez toneladas/ Matar nós dois/ Morrer ao seu lado/ Bem, o prazer e o privilégio serão meus." O disco termina com a etérea "Some Girls Are Bigger than Others", que parece amortecer o impacto da penúltima música e de todo o disco.

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Envelopado com uma foto em preto e branco do ator francês Alain Delon no filme Terei o Direito de Matar, de Alain Cavallier de 1964, a capa do disco ganhou um tom esverdeado tornado mais intenso graça à cor rosa no título da banda e do nome do disco. Lançado por uma gravadora independente inglesa (que poucos anos antes era apenas uma loja de discos), o disco chegou ao segundo lugar das paradas britânicas e apenas no número 70 da parada norte-americana. Foi o suficiente. A mistura de poesia romântica, melodias perfeitas, riffs sutis, crítica social, pop elaborado e intensidade sentimental atingiu o resto do mundo com força, fazendo aquele híbrido de Kinks com folk pop, canções de cabaré com glam rock, Oscar Wilde com punk rock era o oposto perfeito do rock que vinha sendo produzido comercialmente à época, auge do metal farofa e de músicas como "Rock Me Amadeus" e "Take My Breath Away".

Além do aspecto visual: Morrissey criava uma espécie de álbum de fotografias de seus gostos estéticos ao escolher cenas de filmes obscuros, musos de Andy Warhol, atores e atrizes desconhecidos e outtakes de nomes conhecidos (como Elvis e James Dean) para as capas de seus discos e singles, sempre com uma história envolvendo contracultura ou homossexualidade. E o visual da banda era oposto à cafonália néon dos anos 80, evocando jeans e camiseta, jaquetas e topetes dos anos 50, que misturavam Chet Baker a Montgomery Cliff e Jack Kerouac. Os Smiths salvaram o rock de um vazio existencial que culminaria no final dos anos 80, incentivando gerações que, nos anos seguintes, reverenciariam sua curta carreira. Sem os Smiths algumas das principais bandas dos últimos 30 anos talvez não tivessem existido ou soassem bem diferentes. Nomes como Radiohead, Oasis, Arcade Fire, Suede, Death Cab for Cutie, Stone Roses, Deftones, Muse, Smashing Pumpkins, Blur, Placebo, Modest Mouse, Nirvana, Belle & Sebastian, Pulp, Killers, entre muitos outros, devem sua existência à ruptura liderada por Morrissey e Marr a partir do início dos anos 80. E quase todos esses nomes têm suas raízes fincadas em The Queen is Dead, um disco tão importante quanto influente.

No ano seguinte, a relação de Morrissey e Marr começou a ficar mais deteriorada e o guitarrista largou a gravação do próximo disco do grupo por duas vezes, uma para acompanhar os Pretenders (quando, inclusive, o grupo tocou no Brasil) e outra para tocar no último disco dos Talking Heads, Naked. Morrissey entendeu aquelas escapadas do amigo como desinteresse na banda e Strangeways Here We Come, quarto disco dos Smiths, lançado em 1987, seria seu último disco. Mais impressionante do que lembrar que a banda teve cinco anos de existência é saber que os Smiths deixaram de existir antes de Johnny Marr completar 23 anos. Contudo, isso é claramente um dos motivos do sucesso da banda: o vigor da juventude era sua força-motriz, que carregava dois talentos indiscutíveis, que nunca brilharam tanto quanto quando eram jovens.

E foi assim que os Smiths abriram um caminho alternativo para o rock, quase trinta anos após sua criação nos anos 50. No momento em que o aspecto guerreiro e trovador do formato se transformava em caricatura ou em algo pior – um mero produto -, o grupo inglês reanimou aquela formação musical para que ela pudesse persistir por mais algumas décadas, apontando para valores considerados secundários no gênero, como a sensibilidade, a timidez, a revolta interior. Um legado imensurável.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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