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Há meio século, Dylan criou o rock clássico em "Blonde on Blonde"

Alexandre Matias

16/05/2016 20h32

blonde

No dia 16 de maio de 1966, no exato dia em que os Beach Boys subiam o patamar da música pop com o magnífico Pet Sounds, Bob Dylan encerrava sua transformação mais radical e iniciava o período mais controverso de sua carreira ao lançar o primeiro LP duplo da história do rock. Batizado de Blonde on Blonde, o disco não só confirmava a presença de Dylan no círculo mais alto daquele novo gênero como lhe passava o verniz que o faria sobreviver pelo menos por mais meio século com o mesmo ar de contestação e jovialidade de seus primeiros dias. Porque Blonde on Blonde é o primeiro disco de rock clássico.

Dylan vinha de um começo de carreira turbulento, um forasteiro que chegou ao epicentro do folk nova-iorquino, no Village, e em menos de um ano passou de anônimo para principal nome daquela cena ao canalizar as preocupações sociais do herói musical do operariado daquele país, Woody Guthrie. Sua rápida ascensão o transformou em uma espécie de deus vivo para toda uma geração de músicos e intelectuais e Dylan logo começou a ficar cansado daquele papel. Passou a cantar músicas de teor ainda mais político e aos poucos ia experimentando novos formatos de letras, fugindo das descrições literais rumo a uma poesia mais ousada, que buscava referência nos irmãos mais velhos que encontrou nos escritores e poetas da geração beat.

A guinada mais radical, no entanto, começou no dia 28 de agosto de 1964, depois que ele apresentou o primeiro baseado que os Beatles fumaram, numa suíte de hotel em Nova York. Naquele momento, os dois – especificamente Lennon e Dylan – se reconheceram como forças similares e entenderam que podiam ir para a direção de onde o outro vinha. O encontro fez os Beatles começarem a se levar mais a sério, sair do clichê rock'n'roll que eles inevitavelmente se tornariam. Dylan viu naquela jovialidade elétrica inglesa a possibilidade de abandonar de vez o culto que vinha o cercando, que deixara de tratá-lo como uma benção divina para virar a voz de uma geração. Ele repudiava aquela devoção descabida da mesma forma que a cena folk repudiava o rock.

O próximo passo da transformação foi o lançamento do disco Bringing it All Back Home em fevereiro de 1965, em que Dylan cometia a heresia de tocar um lado inteiro do disco – e justo o primeiro! – com uma banda elétrica. Suas letras começavam a flertar com o surrealismo e fazia jogos de palavras que mais confundiam que explicavam – e o mesmo começou a acontecer em suas entrevistas. Deixou o cabelo crescer numa pequena juba cacheada, usava blasers surrados e um eterno Rayban Wayfarer, seja dia ou noite, sempre ironizando seus entrevistadores com respostas atravessadas ou literais (ecoando, justamente, as entrevistas nonsense dos Beatles quando eles chegaram aos EUA). O título daquele disco – "trazendo tudo de volta pra casa" – também era uma declaração de amor às suas próprias raízes elétricas: Dylan foi fã tanto da primeira geração de roqueiros (Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little Richard, Buddy Holly) quanto da primeira geração de blues elétrico (Muddy Waters, Howlin' Wolf, Sonny Boy Williamson, John Lee Hooker, Willie Dixon) quando era adolescente chegando a inclusive ter bandas de rock. Quando viu que os Beatles e toda a invasão inglesa (Rolling Stones, Animals, Them, Who, Yardbirds) estava usando aqueles artistas como suas armas, Dylan resolver virar o jogo de volta para os Estados Unidos.

Em junho daquele ano ele lançou sua música mais ousada até então, "Like a Rolling Stone", em que amarrava tanto seu novo conceito musical quanto lírico ao comparar o título de uma das principais bandas inglesas com a expressão que deu origem ao nome da banda, criada por Muddy Waters. "Como é sentir-se completamente só, sem ter casa para onde ir, como um completo desconhecido?", perguntava de forma implacável ao ouvinte no refrão, invertendo também o ponto de vista da geração folk, acompanhado de uma banda elétrica tão enfurecida quanto seus vocais. "Like a Rolling Stone" entraria no disco seguinte de Dylan, Highway 61 Revisited, o segundo álbum de sua trilogia elétrica, e também ousava em sua duração – com mais de seis minutos, ela era muito maior do que qualquer canção pop da época, que mal batiam os três minutos.

O meio de 1965 ainda veria a infame apresentação no festival de folk de Newport, em julho daquele ano, quando, acompanhado de músicos elétricos, Dylan era o principal nome do evento, cuja força foi cortada abruptamente durante o show, segundo a lenda – desmentida anos depois – pelas mãos de um dos organizadores do festival, que teria usado um machado para cortar um cabo de energia.

Dylan entrava em 1966 querendo dar seu passo definitivo em sua mudança e resolveu assumir as rédeas do rock como obra de arte. A capa com uma foto fora de foco, a ousadia de um disco duplo – que contava com uma música de onze minutos ocupando todo seu quarto lado -, a referência à alta cultura no título (que teria sido derivado de Brecht on Brecht, do dramaturgo alemão Bertold Bretch), as citações e referências dúbias escondidas nas letras. Como todos seus discos, Blonde on Blonde era uma imensa tela em branco em que Dylan resolve pintar sua visão de mundo, mas é a primeira vez que ele consegue reunir o sagrado (a arte) e o profano (o rock) num mesmo disco. As letras cada vez mais complexas e ambiciosas soavam também mundanas e pedestres – ele não precisava da verborragia do disco que havia lançado no início do ano anterior para mostrar como evoluía como compositor.

São músicas que estão entre as grandes músicas daquele período, independentemente do gênero musical, e, em sua maioria, clássicos do século passado. Da jocosa "Rainy Day Women #12 & 35" – que abre o disco como uma banda marcial chapada, com Dylan repetindo o trocadilho raso "everybody must get stoned" às gargalhadas, em que brincava com o duplo sentido da palavra "stoned" (apedrejado ou chapado) – à pesarosa "Sad Eyed Lady of the Lowlands", que ocupa todo o último lado do segundo disco, somos apresentados a um desfile tão impressionante de músicas boas que parece inacreditável que pertençam a um mesmo disco: "Pledging My Time", "Visions of Johanna", "One of Us Must Know (Sooner or Later)", "I Want You", "Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again", "Leopard-Skin Pill-Box Hat", "Just Like a Woman", "Most Likely You Go Your Way and I'll Go Mine", "Temporary Like Achilles", "Absolutely Sweet Marie", "4th Time Around" e "Obviously 5 Believers" estão todas entre as melhores canções de Dylan e em todas ele consegue equilibrar a autoridade e altivez da arte com a força e crueza do rock.

Para isso, ele contava com a sacramentação de sua principal banda de apoio, o antigo grupo canadense The Hawks, formado por Robbie Robertson, Rick Danko, Richard Manuel, Garth Hudson e Levon Helm. Foi a mesma banda que o acompanhou pela Europa no início daquele ano, quando confrontou um público ainda mais radical que o norte-americano. É célebre a apresentação em que um integrante da plateia xinga-o de "Judas!" por tocar instrumentos elétricos, pouco antes de ele gritar, fora do microfone, para a banda "toquem alto pacas!" ("play fucking loud", em inglês, soa melhor), que engataria uma das grandes versões ao vivo da canção. Em disco, no entanto, Dylan trabalharia com músicos de estúdio, principalmente cobras de Nashville depois que Dylan resolveu ir de mala e cuia para a meca da country music, morar nos estúdios da CBS naquela cidade.

Lançado no dia 16 de maio, Blonde on Blonde só começou a ser promovido pela gravadora no início de junho e há versões que contestam essa data de lançamento, que teria acontecido apenas em julho. Neste mesmo mês Dylan sofre um acidente de moto perto de sua casa de campo, em Woodstock, um incidente crucial em sua biografia. Não apenas pelo acidente em si – até hoje não se sabe a gravidade deste acontecimento – , mas Dylan aproveitou a deixa para desaparecer do grande público. Havia boatos que ele havia sido assassinado pela CIA, que o acidente havia deixado-o paralítico ou que ele nem tinha se envolvido em acidente nenhum, só queria sair da roda viva que lhe cercava. Em Woodstock, ao lado da mesma banda canadense com quem gravou a maior parte de Blonde on Blonde, Dylan se aposentaria precocemente, mas não deixava a música de lado.

Começou a gravar clássicos de sua adolescência – e da juventude dos Hawks -, compondo novas músicas a partir daquela inspiração. Os Hawks mudaram de nome para The Band e começariam sua própria discografia com um disco inacreditável composto naquela casa rosa, chamado didaticamente Music from the Big Pink. Dylan desaparecia por mais de um ano e notícias sobre sua saúde começaram a aparecer graças a canções que seu empresário começou a revelar como se mensagens de um messias desaparecido. Aquelas músicas se tornariam mais conhecidas futuramente como The Basement Tapes – as fitas do porão – e fizeram parte do primeiro disco pirata da história, The Great White Wonder, lançado em 1969. E isso só pode acontecer porque Bob Dylan havia entendido que poderia transformar em clássica a cultura em que cresceu, ao inventar o rock clássico.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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