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"Pet Sounds", a obra-prima dos Beach Boys, mudou o pop há 50 anos

Alexandre Matias

15/05/2016 22h11

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Os anos 60 sãõ lembrados por sua inventividade e ousadia ao mexer nas estruturas da cultura popular graças a novidades comportamentais relacionadas ao sexo, às drogas e ao rock'n'roll. Os grandes ícones desta década são cabeludos e ruidosos, exploradores radicais de fronteiras estéticas e conceituais, vanguardistas – conscientes ou não – que rompiam com tradições decanas e levavam a cultura a uma vertiginosa curva ascendente em termos de qualidade de produção artística. Um dos melhores exemplos desta transformação – e gatilho para diversas outras – é o relato emotivo que um jovem californiano de 23 anos fez sobre sua vida a partir dos sentimentos sobre sua infância. Pet Sounds, que completa meio século de existência nesta segunda-feira, não é apenas o disco mais ousado da carreira dos Beach Boys e sua obra-prima incontestável, mas, principalmente, é a jornada individual de Brian Wilson em busca de uma música pop perfeita, inatingível, inefável, transcendental. Uma viagem que mudou completamente a cultura pop.

O disco lançado no dia 16 de maio de 1966 pode ser analisado por dois pontos de vista, ambos centrados no amadurecimento do líder da banda. O primeiro deles diz respeito ao tema. Brian Wilson havia abandonado os palcos depois de uma crise de pânico no final de 1964. Brian Wilson era baixista, tecladista, vocalista e principal compositor dos Beach Boys, uma banda californiana que havia conquistado o público norte-americano com hits sobre praia, sol e surfe que são clássicos do rock, com "Surfin' U.S.A.", "Surfer Girl", "Surfin' Safari", entre outras. Ao deixar a rotina estressante de shows, Wilson pode dedicar-se às composições e a aventurar-se pelo estúdio de gravação, uma recente descoberta que fez que Brian acumulasse também a função de produtor.

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A explosão de popularidade do novo pop norte-americano obrigava muitos grupos formados por jovens músicos que mal sabiam tocar a utilizar instrumentistas profissionais para realizar as gravações a tempo de continuar sua agenda de shows e apresentações em programas de TV. Brian Wilson entendeu como isso funcionava e aos poucos começou a utilizar estes músicos em prol de sua criatividade. À medida em que largava seus compromissos presenciais como os Beach Boys, ele começava explorar seu talento graças à técnica destes profissionais. Estes músicos, conhecidos informalmente como "Wrecking Crew", "The Clique" ou "First Call Group", eram instrumentistas de formação popular que entendiam a linguagem da nova música ao contrário da maioria dos músicos contratados por gravadoras àquela época, de formação erudita. Eram cerca de 20 músicos que revezavam-se gravando hits de grupos como The Mamas & The Papas, Nancy Sinatra, Johnny Rivers, Simon & Garfunkel, The Righteous Brothers, Sonny & Cher, Monkees, Neil Diamond e inúmeros de outros artistas esquecidos com o tempo. Mas que começavam a tomar gosto por trabalhar com Brian Wilson justamente porque ele gostava de experimentar e fugir das convenções, utilizando-os de forma radical. Há um documentário de 2008 (disponível inclusive no Netflix) chamado The Wrecking Crew, que conta a história destes músicos e da relação deles com Brian.

Foi a partir deste novo contexto para inspiração que Brian Wilson começa lentamente a fugir dos temas praianos que faziam sucesso com o grupo formado por seus irmãos Calr e Dennis Wilson, o primo Mike Love e o amigo de infância Al Jardine. Pet Sounds seria o salto definitivo rumo a um outro universo – o próprio ego de Wilson, revisto num confessionário terapêutico inédito na canção popular. Não eram músicas de amor nem eram feitas para as pessoas dançar. No conjunto de canções que depois se tornaria Pet Sounds Brian Wilson abria seu coração para falar do amadurecimento de relacionamentos, sobre a busca por um sentindo na vida, sobre a própria insegurança. O disco também marcou a primeira vez que Brian trabalhava com o compositor Tony Asher, que funcionou mais como condutor lírico das ideias de Brian do que propriaente um coautor. O tom confessional da maioria das músicas marcava uma dramática divergência em relação às distrações que descrevia nas próprias músicas até então. Como autor, Brian Wilson só pode ser comparado a Bob Dylan e aos Beatles na radical transformação que aconteceu com a canção nos anos 60, que deixaram de ser veículos para vender discos para ganhar aspectos autorais que a colocavam próximas a obras tão importante para o século passado quanto filmes e livros.

O segundo ponto de vista de abordagem de Pet Sounds é estritamente musical. E vem justamente da confiança mútua entre Brian e os integrantes da Wrecking Crew. Cada vez mais à vontade no estúdio, Brian cantarolava trechos inteiros de linhas de baixo, solos de guitarra, levadas de percussão, cordas, metais para cada um dos músicos. Completamente intuitivo, criava pequenas sinfonias em sua cabeça e explicava didaticamente a sonoridade que buscava para cada frase melódica. E à medida em que ia criando a base para cada canção, a arranjava de forma ainda mais aprofundada, acrescentando instrumentos inusitados, timbres inacreditáveis, quebrando tabus de gravação. Acrescente a essa musicalidade a qualidade indiscutível dos Beach Boys como grupo vocal e Pet Sounds soa realmente divino.

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Como um Mozart moderno, Brian Wilson convergia diferentes frases melódicas e criava uma profundidade harmônica inédita na música pop. Ladeava instrumentos clássicos como cravos, fagotes, tímpanos, violas e oboés a theremins, órgãos, baixos e guitarras elétricas e ruídos como buzinas de bicicleta, latidos de cachorros, conversas no estúdio que sobravam nas gravações. A frase que acompanha o vocal de Brian na abertura da segunda faixa, "You Still Believe in Me", é um bom exemplo da obsessão de Brian, que queria um som de cravo ainda mais transcendental e fez Tony Asher puxar as cordas de dentro do piano enquanto ele pressionava as notas no teclado. Brian tinha consciência que estava continuando o trabalho de Phil Spector, lendário produtor que na virada dos anos 50 para os 60 redefiniu os conceitos de gravação a partir da criação do que ficou conhecido como "wall of sound" em que vários instrumentos eram gravados com a mesma intensidade de forma a criar uma "parede de som" feita para realçar ainda mais a voz. O melhor exemplo do trabalho de Spector são suas duas obras-primas "Be My Baby" e "You've Lost That Loving Feeling", canções fundamentais para a formação de Brian Wilson como compositor.

Outra clara inspiração musical de Wilson eram os Beatles. Brian não apenas comparava-os com os Beach Boys pelo fato dos dois terem conquistados seus países com uma sonoridade semelhante exatamente na mesma época como acompanhava atento os passos dados por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Mas nada que os Beatles fizeram teve o impacto tão grande sobre Brian quanto o disco Rubber Soul. Ele havia ficado impressionado com a maturidade das letras – Johnn estava cantando sobre ter um caso fora do casamento em "Norwegian Wood" enquanto George Harrison tocava cítara indiana na mesma música, enquanto Paul cantava o refrão de "Michelle" em francês! – e com a unidade do disco. Não existiam músicas feitas para tapar buraco. O álbum deixava de ser uma mera coleção de compactos – era uma obra em si mesma, com começo meio e fim.

Quando todas essas características se juntam – o que acontece em todas as canções do disco – Pet Sounds é de arrepiar. O caminhar clássico e aparentemente despretensioso de "God Only Knows" faz a voz de Carl Wilson nos levar para um estágio sublime que vai crescendo entre vocais, teclados e cordas. "I'm Waiting for the Day" lida com ciúme e vingança mas ao transcender musicalmente para uma esfera complexa e doce, chega à redenção. A melancólica "I Know There's an Answer" e a pensativa "I Just Wasn't Made for These Times" completam-se ao mostrar a busca e a angústia nesta busca – tanto musical quanto conceitual – pela qual Brian atravessa. Seu timbre impecável em "Don't Talk", que pede para que o ouvinte "não fale, coloque a cabeça em meu ombro / Chegue perto, feche os olhos e fique imóvel / Não fale, pegue minha mão e ouça meu coração bater" antes de fazer o baixo repetir o pulso de um coração. "Ouça, ouça, ouça", antes de cordas carregarem a canção para uma dimensão sentimental.

O grupo tirou fotos para a capa do disco no zoológico de San Diego e algumas imagens dos Beach Boys brincando com animais ajudou Brian a definir o título do álbum, além de ter utilizado sons de animais na gravação. Os "pet sounds" do título no entanto não dizem respeito aos sons dos bichos e sim a sons de estimação, como se Brian estivesse explicando que se relacionava com a música da mesma forma que se relacionava com os bichos, pegando-as para criar. O título também trazia uma homenagem subliminar ao ídolo Phil Spector com suas iniciais "P.S.".

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Pet Sounds termina ao som de um trem passando e dos latidos dos cachorros de Brian, Louie e Banana, que encerram a triste "Caroline No", que foi a primeira música do disco a ser lançada como compacto, ironicamente apenas com o nome de Brian Wilson. Mas ele não queria uma carreira solo e sabia que seu trabalho só fazia sentido dentro do próprio grupo que havia criado. Mesmo que o disco tenha azedado sua relação com seu primo Mike Love, causando o principal cisma na história do grupo, ele é o ápice da carreira de Brian Wilson e dos Beach Boys. A provocação foi entendida pelos Beatles do outro lado do Atlântico, quando Paul McCartney – nascido apenas dois dias antees que Brian – ouviu o disco com a mesma sensação que Brian ouvira Rubber Soul, provocando-o a ser ainda mais ousado com os Beatles, o que lhe fez criar o conceito do disco Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band, lançado em 1967. Foi apenas um entre os vários artistas influenciados por um disco que foi crucial na transformação que aconteceu nos anos 60 e até hoje faz novos fãs – e que, sem exagero, mudou a cara do pop, que teve no álbum a certeza de que era possível ser mais artístico, autoral e comercial ao mesmo tempo.

Depois disso, Brian perderia o rumo. O lançamento de Sgt. Pepper's tornou-o ainda mais obcecado em superar os Beatles e ele embarcou no projeto do disco Smile, que teve de ser abandonado por sua megalomania. Completamente entregue ao LSD – uma das grandes influências de Pet Sounds -, Brian não conseguiu repetir o feito do disco anterior, quando os voos artísticos tinham coesão e entrou numa espiral emocional interminável para fazer o disco. Começou a ficar recluso em casa, deitado na cama olhando para o teto, imaginando como extrair de sua cabeça a sonoridade que ouvia. A gravadora Capitol teve de intervir e o Smile foi transformado no disco Smile Smiley, editado à revelia de Brian. Ele foi se tornando cada vez mais antissocial e difícil de lidar, uma das primeiras vítimas dos anos 60. Sua trajetória foi (bem) contada no recente filme Love & Mercy, lançado no Brasil com o título ridículo The Beach Boys: Uma História de Sucesso, em que Brian é interpretado por Paul Dano na época de Pet Sounds e por John Cusack, nos anos 80, quando começou a tentar voltar à produção com a ajuda de seu terapeuta Eugene Landy. Mas isso é outra história.

Atualmente Brian Wilson está comemorando o aniversário de 50 anos do disco com uma turnê em que ele toca o disco inteiro ao vivo até outubro deste ano. As datas da tour podem ser vistas no site oficial do músico. Bem que alguém podia trazer essa obra-prima ao vivo para o Brasil.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

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