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Como a crise política brasileira está fazendo a cena musical se organizar

Alexandre Matias

14/04/2016 11h11

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No incerto futuro próximo brasileiro há ao menos uma certeza: a patética crise institucional que se instaurou sobre o país ajudou a mobilização política da classe musical, um movimento que vem crescendo desde que os protestos deixaram de ser focos isolados e ganharam as ruas naquele histórico junho de 2013. De lá pra cá manifestações de músicos, cantores, produtores e compositores vêm ganhando corpo pouco a pouco e a música começa a ser usada como ferramenta de mobilização popular e meio de comunicação. Protestos contra a Copa do Mundo, a favor do movimento estudantil paulista ou em solidariedade com as vítimas do crime ambiental em Mariana, em Minas Gerais, foram ganchos para diferentes artistas se expressarem politicamente.

O foco desta vez é a crise política no país. Músicos, produtores, intérpretes e outros artistas começaram, na segunda-feira passada, dia 10, uma ocupação de shows gratuitos no Largo da Batata, na zona oeste de São Paulo, em que dezenas de artistas apresentam-se para conscientizar a população da forma como o impeachment da presidência vem sendo conduzido. O movimento #MúsicaPelaDemocracia já teve apresentações de nomes como Chico César, KL Jay dos Racionais MCs, Aláfia, Eddie, Rodrigo Ogi, Lucas Santtana, Rafael Castro, Rashid, Iara Rennó, Marrero, Jonnata Doll e os Garotos Solventes, entre outros. O show desta quinta-feira reúne as principais atrações do evento, com Tiê (às 17h), Guizado (às 18h), Anelis Assumpção (às 19h), Lira (às 20h), Tulipa Ruiz (às 21h), BNegão Trio (às 22h) e Bixiga 70 (às 23h). As apresentações continuam até sábado, com shows de Naná Rizinni, Sílvia Tape & Edgar Scandurra, Jaloo, MC Soffia, Black Alien, Felipe Cordeiro, Maurício Pereira e discotecagens de Bárbara Eugenia e Tatá Aeroplano.

KL Jay (Júlio Oliveira/Divuulgação)

KL Jay (Júlio Oliveira/Divuulgação)

"A idéia surgiu em uma reunião de produtores e artistas, em São Paulo", explica uma das organizadoras do evento, a produtora Heloísa Aidar, dona da distribuidora Ponmello. "O foco do encontro era debater o cenário atual e pensar em formas de mobilização da classe artística, mas especificamente, da música, a favor da democracia. Alguém teve uma primeira idéia de uma vigília, e a partir daí pensamos em uma ocupação, onde poderíamos agregar outras atividades." Também há atividades extramusicais, como oficinas, apresentações de clowns, aulas de yoga, debates, exibições de filmes, apresentações de dança, circo e leituras. Maiores informações podem ser encontradas na página do Facebook do movimento.

"Eu pessoalmente senti uma grande demora no engajamento dos artistas, principalmente da área música", continua a produtora e empresária. "Mais do que (realizar) eventos, atos, senti falta de uma comunicação entre eles, para debaterem, trocarem idéia mesmo. Parecia que ninguém se falava. Talvez o Facebook nos dê a falsa impressão de comunicação, de engajamento. Mas quando aconteceu, fiquei emocionada. É incrível o que os artistas são capazes de fazer, e o lugar dentro de cada um que eles conseguem atingir."

Quem também ficou incomodado com a demora dos artistas de assumir uma postura política foi o produtor Daniel "Ganjaman" Takara, ex-integrante do coletivo Instituto que hoje trabalha com o rapper Criolo, além de produzir alguns dos melhores discos da nova geração da música brasileira. "O silêncio da classe musical até então estava me incomodando profundamente", explica. "Talvez em função do ódio generalizado que o atual momento político tem proporcionado, muitos artistas de posicionamento firme permaneciam calados, e os poucos que se manifestavam eram vítimas de ataques, ofensas e muita agressividade. Senti que era necessário formar um quórum representativo para tornar esse posicionamento mais representativo, e até incentivar a participação dos que não estavam seguros em se posicionar individualmente."

Daniel conversou com dezenas de artistas e articulou o vídeo #TodosPelaDemocracia, em que discute-se o momento atual da política brasileira. São nomes como Emicida, Clarice Falcão, Silva, Elza Soares, Russo Passapusso, Tico Santa Cruz, Chico César, Curumin, Yamandu Costa, Zé Renato, Leoni, Céu, o próprio Criolo, entre outros, que explicam porque são contrários ao impeachment de Dilma Rousseff.

"Música sempre esteve atrelada a política e me espanta receber mensagens de fãs reclamando de engajamento excessivo", continua o produtor. "Vários momentos políticos do Brasil foram profundamente marcados por canções que viraram quase hinos de gerações inteiras, mesmo que por vezes, de forma equivocada. Música é um instrumento de construção social, política, humana e espiritual. Da mesma forma que pode alienar, tem um poder de transformação maior que muitos programas políticos. Na minha opinião, o Racionais MCs é um grande exemplo disso. "

Heloísa concorda com Daniel: "Acredito que a 'boa arte' sempre nos tira da zona de conforto, da alienação e nos faz pensar, questionar. Acho fundamental o papel da música em fomentar reflexões, em nos incitar a pensar sobre a realidade, a história, o bem-estar, a qualidade de vida, e nos fazer sempre questionar o cenário atual. Ontem (terça-feira), no Largo da Batata fiquei observando o público nos shows e entendi que aqueles artistas – e produtores, e técnicos, etc. – tiraram estas pessoas de suas casas, proporcionaram encontros, proporcionaram a ocupação daquele largo que na verdade é nosso. Com certeza isto trouxe a muitos a vontade de que aquele largo seja ocupado pela arte e pelo lazer em mais momentos. A outros trouxe a possibilidade de discutirem o que esta acontecendo na política. Isto é muito importante em um sistema que nos induz a estar o tempo todos o mais isolados possível."

Eddie (Pedro Galiza/Divuulgação)

Eddie (Pedro Galiza/Divuulgação)

Os dois também concordam que arte não necessariamente precisa ser engajada ou politizada. "Não acho que um artista precise levantar uma bandeira, ir a comícios para estar atuante na vida política. A arte por si só muitas vezes já basta para trazer a política para a vida cotidiana das pessoas", explica Heloísa. "Não vejo isso como uma necessidade , mas acho que os artistas que tem essa veia política precisam estar mais ativos", completa Daniel. "Venho do punk rock e do rap, dois estilos musicais que sempre tiveram forte envolvimento sócio-político, portanto é natural que desde sempre me posicione."

O protesto de Ganjaman foi além do vídeo e tomou conta das recentes apresentações do rapper Criolo no Brasil, que está prestes a lançar uma nova versão de seu primeiro disco, Ainda Há Tempo, lançado originalmente em 2006: "É muito impressionante – e também triste – o quanto as temáticas de um disco lançado há 10 anos soam atuais. Algumas faixas parecem que foram escritas para acontecimentos muito recentes e chego a ficar assustado com o 'Nostradanismo' do Criolo. É claro que esse momento político acaba sendo aclamado pela platéia, e nossa posição é sempre respeitar quaisquer manifestação que ocorra, contanto que não incite o ódio, racismo, machismo, homofobia ou algo do tipo."

Chico César (Júlio Oliveira/Divuulgação)

Chico César (Júlio Oliveira/Divuulgação)

Mas e depois de domingo? Seja qual for o resultado da eleição na câmara dos deputados neste domingo, a classe musical não quer perder a oportunidade de permanecer em discussão. "Esta é a grande preocupação atual.
Estamos lá clamando pelo respeito a democracia, a nossa constituição. Se os nossos direitos forem violados, a luta continua. O foco é claro, e a união já aconteceu. Temos um denominador comum que nos junta nas ruas. E ninguém vai nos calar. E não desistiremos. Porém, se o impeachment não for aprovado, ainda assim é importante esta união da classe artística, pois a democracia que vivemos esta longe de ser a ideal. Talvez para mim, classe-média-branca seja mais fácil encher a boca para falar sobre democracia. Mas será que se eu fosse negra, classe-baixa, transexual, etc., a democracia estaria ainda tão presente na minha vida? Acredito que não. Vivemos em um país onde as pessoas simplesmente morrem por serem pobres e negras e os assassinos são a própria polícia. Famílias tiveram as suas vidar arruinadas por um crime ecológico, e nenhuma justiça ainda foi feita. Onde estão os direitos destas pessoas? Eles são respeitados? O buraco é muito mais fundo, e acredito que a nossa mobilização tem que encarar isto de peito aberto, entendendo que a classe artística pode fazer uma grande diferença neste processo."

Daniel concorda e reforça que já há avanços positivos em andamento: "Nos últimos anos foram organizadas várias frentes de agentes culturais para um diálogo mais estreito com setores políticos e governamentais. Muitos avanços já foram alcançados por esses esforços coletivos e acredito que de alguma forma, a classe artística está acordando para essa discussão, mesmo que seja por que a 'água bateu na bunda"'.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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