Admita: J.J. Abrams conseguiu salvar "Guerra nas Estrelas"
Já assistiu o novo episódio de Guerra nas Estrelas? O texto a seguir tem algumas referências ao novo filme, embora não entregue tão descaradamente o roteiro, as surpresas e alguns dos momentos-chave de O Despertar da Força. Depois volto a discutir o filme mais detalhadamente por aqui, mas antes disso eu queria falar sobre J.J. Abrams.
Admita: ele conseguiu fazer – e bem – o que muitos tinham certeza de que ele não conseguiria. Desde que seu nome foi anunciado como o diretor do novo episódio da saga Skywalker o que não faltou foi gente torcendo o nariz pela escolha, quase sempre associando a escalação ao final do título mais conhecido do diretor e produtor, o seriado Lost. Mas eu já havia cantado a bola sobre porque achava que ele era o cara certo para fazer o novo Guerra nas Estrelas, pois ele sabe manipular as emoções dos fãs.
Tudo bem que o final do seriado ficou aquém do que poderia ser a partir das inúmeras teorias e invencionices narrativas que J.J. e sua dupla de roteiristas Damon Lindelof e Carlton Cuse criaram por seis temporadas – e olha que eu sou dos poucos que não acha o final propriamente horroroso. Contudo, o mais importante em Lost – que foi crucial na era de ouro da atual produção de ficção para a TV – não era exatamente sua história e sim a forma como ela costurava personagens e atores carismáticos e hoje icônicos e nos fazia apegar a uma sensação de comunidade que interligava os sobreviventes da queda do voo 815 da Oceanic com uma rede de espectadores espalhados pelo mundo. Foi o momento em que a TV misturou-se com a internet começando a criar a audiência global que hoje assina o Netflix.
Mas Lost é só um degrau na escalada de J.J. Abrams. Sua carreira já reúne feitos notáveis e obras que já podem ser consideradas clássicas, sempre deixando suas marcas registradas espalhadas por onde passa. Em vez de ser um diretor temático ou dono do próprio estúdio ou autor de uma enorme mitologia, J.J. atua como grife para saltos ousados rumo ao topo do entretenimento mundial. E o novo episódio de Guerra nas Estrelas é só mais exibição de maestria pop com uma grife alheia, coisa que ele já havia feito com a série de filmes Missão: Impossível e com a nova versão para os filmes da série Jornada nas Estrelas.
E faz isso apostando em personagens fortes, como em suas outras produções. O pulso firme da protagonista Rey é descendente direto do de Felicity da série homônima, de Sidney Bristow da série Alias e de Olivia Dunham, da série Fringe, todas criadas por J.J.. O ímpeto quase adolescente de Finn tem eco no Peter Bishop de Fringe e nos meninos do filme Super 8, cujo aspecto retrô é revisitado ao nos reencontrarmos com a nave de Han Solo. Kylo Ren é um vilão tão emotivo quanto o Nero do primeiro Jornada nas Estrelas, Arvin Sloan de Alias e Ben Linus de Lost (embora inferior aos dois últimos). Fora dois atores favoritos do diretor (um deles quase onipresente em tudo de J.J., o outro conhecido da segunda metade de Lost) que fazem pequenas pontas mais para o final do novo episódio de Guerra nas Estrelas.
A câmera que não para de se mexer – outra característica das cenas de ação do diretor, elevado ao status de arte nos três filmes mais recentes da série Missão: Impossível e no subestimado Cloverfield -, faz as cenas de batalha e de perseguição quase idênticas às da trilogia original ganharem mais fôlego justamente por seus ângulos ousados e perspectiva em movimento. A primeira cena com a Millennium Falcon é um delicioso passeio de montanha russa.
E é claro que o famigerado lens flare – aquele brilho estourado que parece cegar o espectador em cenas em que a luz é filmada diretamente – não poderia deixar de aparecer. É a principal assinatura visual de J.J. Abrams e usada à exaustão em qualquer uma de suas produções, justamente para deixar claro que é uma assinatura visual. O diretor não pestaneja e o utiliza sem a menor parcimônia, seja em cenas de explosões no espaço, no raio da grande arma mortal do filme, em dois duelos de sabres de luz realizados no escuro e no primeiro momento em que vemos a Força em ação, quase um laser é congelado no ar e quase esfregado em nossas caras à medida em que seu brilho gera o efeito favorito do diretor. Ele tira uma onda absurda com o uso autorreferencial de lens flare.
Mas mais do que reencarnar arquétipos que já havia utilizado em suas produções nos novos personagens da saga de George Lucas ou de exibir técnicas de direção, o principal acerto do diretor é o vínculo emocional com a narrativa e sua fidelidade à mitologia. Isso torna o novo episódio menos arriscado, mais previsível e menor que O Império Contra Ataca (viu Diego?) e talvez que o Episódio IV (que usa como guia estrutural de roteiro, quase cena a cena).
Era uma escolha. Ele precisava apresentar novos personagens, tinha alguns velhos personagens à disposição, mas precisava recriar aspectos da trilogia original que foram ignorados pela nova trilogia. Assim, voltamos aos recantos mais distantes da galáxia – planetas desertos, um posto de abastecimento pirata, um planeta congelado, outro coberto por um oceano -, onde não há sinal de cidades, parlamentos ou prédios. A única cena que remete aos cenários dos episódios II e III é uma cena de destruição total, quase uma metáfora sobre a não utilização de paisagens urbanas nesse novo filme.
Ouvimos frases repetidas, velhos olhares cúmplices, objetos e cenários dos filmes anteriores, incluindo o sabre de luz de Luke Skywalker (aquele que caiu junto com sua mão decepada em Império) e o capacete de Darth Vader. O gigantismo dos Destroyers é explorado com a mesma hipérbole (desde o mau presságio da primeira cena a um uso esperto do 3D), bem como a velocidade das perseguições no espaço. Chewie, C3PO, R2D2, Leia e Han ajudam bastante no clima familiar do novo filme, embora as grandes estrelas sejam Rey e Finn.
A dupla de protagonistas é o grande trunfo do filme, tanto seus personagens quanto seus atores Daisy Ridley e John Boyega e uma química impressionante, que parece inata aos dois. A cena em que os dois se entrosam de verdade – cada um falando sozinho "eu consigo, eu consigo" – e seu desfecho é daqueles raros momentos de humanidade em um filme de ação deste século. Não são heróis imbatíveis nem aventureiros obstinados – são pessoas com sentimentos à flor da pele. E sentimento é o que não falta neste novo Guerra nas Estrelas. Que J.J. Abrams manuseia mais habilmente do que até a câmera, deixando todos nós grudaos na poltrona.
Por que haja coração…
Mas depois eu falo disso.
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