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"Horses", o disco de Patti Smith que inaugura o punk, completa 40 anos hoje

Alexandre Matias

13/12/2015 08h11

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Um piano acalenta míseros acordes em tom de lamento. "Jesus morreu pelos pecados de outros, não pelos meus", Patti Smith entra arrogante e segura de si. Seu timbre franco e sóbrio é masculino e feminino ao mesmo tempo, fazendo valer a pose desafiadora para a lente do amigo Robert Mapplethorpe que nos recepciona na capa de Horses, seu disco de estreia. Lançado exatamente há 40 anos – no dia 13 de dezembro de 1975 -, ele é um dos discos mais importantes do século passado e a obra que marca a transição entre duas gerações, do rock clássico para o punk. Ela segue balbuciando versos de seu curto poema "Oath", que fala em cartas da sorte e corações de pedra, enquanto a guitarra de Lenny Kaye começa a costurar-se ao piano de Richard Sohl. E ela admite que "meus pecados são meus, eles pertencem a mim", entrando efetivamente na primeira faixa do disco, sua personalíssima versão para "Gloria", do grupo irlandês Them.

Horses é o primeiro disco da geração de músicos que pairava ao redor do CBGB's, um minúsculo bar em Nova York frequentado por motoqueiros e pelos primeiros velhos roqueiros (o rock não tinha nem 20 anos, não custa lembrar). Suas iniciais cifravam uma rígida definição estética e musical – "Country, Blue Grass and Blues" -, cuja rigidez foi desfeita ao abrir seu palco para bandas de jovens perdidos que não encontravam eco nas outras casas noturnas da cidade. Foi no palquinho do CBGB's que aquela safra de músicos – composta por integrantes das futuras bandas Television, Talking Heads, Ramones e Blondie, entre outros – começou a mudar o curso da história do rock, que no meio dos anos 70 começava a se estagnar e virar uma paródia de si mesmo, tanto na exigência de excelência musical do rock progressivo, o começo do gigantismo do popstar (que estouraria na década seguinte), na transformação do folk rock em parcas canções de amor e na figura de Elvis Presley, gordo e decadente, rei de Las Vegas. O rock estava perdendo seu lastro rebelde, seu vínculo com as ruas, sua atitude blasé e estilo de vida boêmio.

Horses é sobre isso. Patti Smith já era mais velha do que aqueles novos garotos do CBGB's – tinha quase trinta enquanto os outros tinham recém passado dos vinte – e vivia a Nova York decadente dos anos 70 como se estivesse na Paris do início do século. Havia um romantismo cru naquela cidade cantada por Lou Reed que divergia do imaginário glamouroso que a geração de Frank Sinatra havia polido décadas antes. Depois de passar anos convivendo com o underground de uma cidade que imaginou antes de conhecer (Patti é de Chicago e chegou em Nova York em 1967), ela, que já era conhecida como poeta naquela cena alternativa, reuniu todas as referências que reuniu pelo caminho criando o cânone de um novo universo em que gostaria de habitar.

A versão de "Gloria", do Them, que abre o disco, acaba resumindo todas essas características. Ela nem é propriamente uma versão, já que se limita repetir o refrão soletrado como fazia Van Morrison na versão original. No selo do disco ela é creditava como "Gloria (in Excelsis Deo)", trazendo a personagem da canção britânica para o cânone da igreja católica, também referida no hoje clássico verso de abertura. A frase em latim – "Glória a Deus nas alturas" – não é pronunciada em momento algum da canção, mas há referências bíblicas que vão surgindo enquanto ela improvisa uma letra como as de Lou Reed no Velvet Underground, descrevendo uma cena urbana que mistura energia, movimento, sexo, dança e presença de espírito.

A faixa começa lenta e hipnótica e vai progredindo lentamente ao redor dos poucos acordes que a compõem. "As pessoas dizem 'tome cuidado' / Mas eu não estou nem aí", ela começa a cantar enquanto sua banda – o Patti Smith Group, que ainda inclui o baixista e guitarrista Ivan Kral e o baterista Jay Dee Daughterty – aos poucos vai entrando num transe particular que se acelera à medida em que a faixa caminha. "Entro num quarto / Você sabe como eu sou / Me movimento por essa atmosfera em que tudo é permitido", ela está fazendo conexões que remetem ao início da arte moderna, quase sessenta anos antes, e depois canta como se fosse Iggy Pop nos Stooges, "vou lá pra essa festa / Aaaah só pra me chatear." A banda vai acelerando e ela encontra a garota do título – "se esfregando num parquímetro" – e canaliza outros seus ícones – Mick Jagger, Otis Redding, Jim Morrison (o "A-ah" no meio da frase "Than I've got a crazy feeling that I'm gonna make her mine" é puro Rei Lagarto). Antes dos primeiros três minutos da canção ela saiu de uma missa, entrou numa festa, num show de rock e cai no refrão no meio de um turbilhão de energia andrógina em que Patti Smith resume toda sua genealogia como se enfiasse o conceito de rock'n'roll tímpanos abaixo do ouvinte.

E isso é só o cartão de visitas do disco. No decorrer dele continuamos passando por outros cenários musicais, artísticos e sentimentais que ajudam a organizar a paisagem do disco clássico. Depois de "Gloria" somos atirados ao triste reggae "Redondo Beach", sobre o suicídio de uma namorada, em que a banda ecoa backing vocals à Beach Boys que deixaria Lou Reed orgulhoso. O épico "Birdland" entrelaça os épicos dos Doors às odisseias beat, num poema catártico inspirado num poema de Peter Reich, que soube que seu pai, o psicólogo William Reich, estava perto de morrer quando ele contou-lhe um sonho sobre uma visita de uma nave espacial que tocava uma velha canção ("Party Doll", de Buddy Knox). Smith entrega-se à canção de forma quase teatral até cair no final em que repete apenas um balbucio doo-wop. "Free Money", que encerra o lado A do vinil original, segue na mesma veia interminável, mas acelera-se vertiginosamente enquanto Patti canta sobre sua infância pobre, em que sua mãe sonhava com o que fazer com o dinheiro que ganhasse na loteria, mesmo que não tivesse dinheiro para apostar.

"Kimberly", escrita para sua irmã de mesmo tempo, abre o lado B com a sensação arrogante da casualidade frente à tragédia, sintetizada no refrão – "irmãzinha, o céu está caindo, eu não me importo, eu não me importo". Ela descreve o apocalipse num fluxo de consciência à Allen Ginsberg, encarnando Joana D'Arc enquanto a banda caminha por outro reggae, só que ênfase no rock, que vai criando o clima para o começo do fim do disco. "Break it Up", composta e tocada com Tom Verlaine, do Television, nas guitarras, foi composta após um sonho em que Smith imaginava Jim Morrison acorrentado feito o semideus grego Prometeu após ter roubado o fogo dos céus, tentando libertar-se. "Land", quase no final do disco, é o contraponto direto a "Gloria" e por dez minutos visita dois poemas de Smith ("Horses" e "La Mer(de)") e o hit "A Land of a Thousand Dances", eternizado por Wilson Pickett, em outro crescendo elétrico em que ela encarna William Burroughs, Keith Richards e canta sobre heroína, cocaína, a Torre de Babel, um mar de possibilidades, além de citar nominalmente um de seus ídolos, cuja influência paira sobre todo o disco, num verso genial ("Go Rimbaud!", como se o poeta francês do século dezenove fosse o primeiro rockstar). O disco termina com a triste "Elegie", um poema sobre morte, que encerra o disco com uma frase sobre amigos mortos, tão forte quanto a que o abre: "Acho que é triste, muito ruim, que nossos amigos não poderão estar conosco esta noite", uma frase roubada da faixa "1983 (A Merman I Should Turn To Be)", de Jimi Hendrix. O disco inteiro, aliás, foi gravado no estúdio Electric Ladyland do próprio Hendrix, outro ídolo de Smith e outra sombra que paira sobre Horses.

Com toda sua arrogância intelectual e primitivismo rocker, Horses encerra a revolução bomba-relógio que começou com o primeiro disco do Velvet Underground, de 1967, quando a banda de Lou Reed e John Cale encontrou-se com o papa da pop art Andy Wahrol e essas duas metades fundiram o rock com arte definitivamente, de forma muito mais profunda do que os Beatles em Sgt. Pepper's ou que os Doors em seu primeiro disco (ambos do mesmo ano). Aquela semente encontraria eco em duas bandas posteriores – nos Stooges de Iggy Pop e nos Modern Lovers de Jonathan Richman, cujos discos de estreia foram produzidos pelo mesmo John Cale que produz o disco de Patti Smith – e culminaria em Horses, que funciona como manifesto artístico por um novo rock, que começa a desconstruir o rock original a partir daquele disco, daquela cena nova-iorquina, que influenciaria toda a música produzida após aquele 13 de dezembro de 1975. A cantora, compositora e poeta não simplesmente pega a tocha do rock da geração anterior, mas toma-a à força e muda todo o percurso do rock, da música moderna e da arte num gesto juvenil e impetuoso.

Ave Patti Smith.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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