O legado da geração dos anos 90 para as bandas de hoje
A nostalgia é inevitável, principalmente pra quem foi contemporâneo da época documentada no filme Sem Dentes – Banguela Records e a Turma de 1994, o quarto documentário que o amigo Ricardo Alexandre, que estreia esta semana no festival In Edit, em São Paulo. É o meu caso: conheci o jornalista e diretor exatamente no ano investigado por seu novo documentário, durante um show no falecido Hitchcock, casa de shows que os irmãos Maluf, que também tinham a banda Concreteness, mantinham na cidade de Santa Bárbara d'Oeste, no interior do estado. Éramos jornalistas tão iniciantes quanto as bandas que cobríamos – e frequentávamos a sede do Banguela Records com a mesma empolgação que todas os artistas, produtores, jornalistas, empresários e outros profissionais ligados à música em relação ao selo que era uma das muitas utopias daquele nascente rock independente dos anos 90.
Já naquela época Ricardo acalentava a possibilidade de escrever um livro sobre o rock da década anterior, cuja safra de bandas criou o universo que nos fez querer trabalhar com música e jornalismo e nas primeiras vezes que conversamos sobre o livro que ele lançaria em 2002 (Dias de Luta), ele já falava o quanto misturaria as biografias daqueles artistas e o surgimento de um novo mercado para a música no país com as próprias impressões pessoais sobre as bandas da época. É bem possível que já em 1994 ele tivesse uma ideia de que um dia poderia fazer outro livro sobre aquela década que vivíamos e já estivesse arquitetando uma obra futura sobre aqueles seus primeiros dias de jornalista, que deram tanto no documentário Sem Dentes quanto no livro Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar, lançado há dois anos. Abaixo, a continuação da conversa que tive com ele quando escrevi sobre seu novo documentário.
Como o documentário Sem Dentes se relaciona com seu livro mais recente, Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar, que é sobre sua trajetória como jornalista na virada do século?
Acho que nos anos 1990 começam a multifacetação, as segmentações, que temos hoje num nível inadministrável. Então, se os anos 80 puderam ser contados e compreendidos em um único livro, num único fio condutor como eu tentei fazer no Dias de Luta (primeiro livro de Ricardo, de 2002), penso que a geração seguinte precisa de uma sobreposição muito maior de pontos de vista. Acho que a relação é esta: são duas histórias sobrepostas. O Cheguei conta a história de um jornalista, o Sem Dentes a de um selo, e os dois contam a história de uma mesma geração.
Você enxerga o próprio Banguela como um movimento artístico?
Acho que o Banguela é uma história com os pré-requisitos necessários para amarrar uma história maior, a daquela geração. A Turma de 94 foi um movimento artístico, sem dúvida. Foi um momento em que ficou muito claro a necessidade de buscar uma identidade brasileira para uma música cosmopolita, internacional, o momento em que se fechou a corrente entre o tropicalismo e o pós-tropicalismo e algo que se convencionou chamar de "rock brasileiro": Mutantes com Pato Fu, Jorge Cabeleira com psicodelia nordestina etc. Foi um dos períodos mais ricos e variados artisticamente, mas mais homogêneos em termos de atitude. Acho que tem a ver com o sucesso do Nirvana, que fez uma geração inteira crer que seria possível furar o mainstream fazendo o som mais maluco possível. E, de certa forma, foi o que aconteceu mesmo.
A geração de 1994 aconteceria sem o Miranda? Uma movimentação como a que aconteceu ao redor do Banguela era inevitável?
Sim, aconteceria, isso o filme deixa claro. O Banguela e o Miranda são fruto daquele momento, e não contrário. É curioso que o mesmo espírito estivesse movendo gente em Brasília, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre… Mas Miranda foi importante em vários momentos, como o "cara das bandas novas" na Bizz, porque como produtor deu senso estético para aquela geração. E foi um cara muito importante na vida de muita gente, muito generoso e incapaz de reter consigo o que ele pudesse dividir. Devo muitíssimo a ele o meu início de carreira como jornalista.
O Banguela aconteceria no Rio de Janeiro?
Acho que não. O Rio era a cidade da indústria do disco, e todo aquele movimento aconteceu como uma alternativa à indústria – ainda que dialogasse com ela muitas vezes, como no próprio caso do Banguela. Esse isolamento, por um lado, e a presença da MTV, por outro, foi fundamental para que São Paulo fosse o ponto de encontro de todo esse povo.
Como o documentário conversa com a cena brasileira de hoje? Um Banguela seria possível hoje em dia?
Sem querer fazer o papel que pertence ao espectador, eu aprendo com o filme sobre a importância da direção artística. Sinto falta de estruturas (não necessariamente selos) que consigam oferecer aos artistas especificamente esse serviço: "corta aqui", "repete ali", "abaixa lá", "trabalha melhor esse refrão". Essa direção é fundamental para quem quer se comunicar, seja um músico ou um jornalista, e a era pós-internet, que pode se comunicar diretamente com seu publico via redes sociais, simplesmente não reconhece a importância de olhos e ouvidos externos. E o filme tem uma mensagem clara: a de que há muita coisa boa sendo feita hoje em dia, em pé de igualdade, se não melhores, com o que de melhor se fez em qualquer época da história.
E quais são seus próximos projetos?
Um novo programa de rádio, semanal, dedicado a música nova. Um novo livro, que investiga o pop nacional entre 1968 e 1972. Palestras. E procurar servir com o que eu aprendi a fazer àqueles que entendem melhor sobre os canais de comunicação com os quais nem sonhávamos na turma de 94.
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