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Principal articulador da conexão entre o reggae e o punk, o lendário documentarista Don Letts está em São Paulo participando do In-Edit Brasil

Alexandre Matias

17/06/2017 14h37

O cineasta Don Letts (divulgação: In-Edit)

"Eu não tinha a intenção de registrar, de documentar, de fazer história", me explica Don Letts em entrevista por telefone logo que chegou ao Brasil. "Eu simplesmente saía filmando, tinha uma necessidade de fazer aquilo". Aquele ímpeto que ainda motiva o cineasta o colocou no centro do punk rock inglês – e da edição 2017 do festival de documentários de música, o já consagrado In-Edit, que acontece neste e no próximo fim de semana.

"Você sabe que este ano completamos os quarenta anos do punk inglês e fiz esse documentário Two Sevens Clash – Dread Meets Punk Rockers (que está sendo exibido na programação do festival) para reforçar que estávamos vivendo aquela cena, mais do que simplesmente a registrando", me explica o cineasta, que firmou-se como um dos principais narradores daquela cena transformadora pelo simples fato de ter acesso às ferramentas de registro. Ele me conta que o contato com uma câmera de vídeo, muito menos sofisticada que as poderosas câmeras digitais ou mesmo que os aplicativos de fotos de nossos celulares hoje em dia, foi o suficiente para que ele começasse a filmar tudo que acontecia ao seu redor.

Letts estabeleceu-se para o público em geral a partir de seu documentário The Punk Rock Movie, de 1978, em que consolidava sua amizade com a banda The Clash em um dos registros mais intensos do movimento faça-você-mesmo que abalou as estruturas do rock tradicional e da indústria fonográfica. Foi o punk que abriu o caminho para o mercado independente que hoje espalha-se por todo o planeta, principalmente pela ramificação da internet e que destruiu as fundações de um rock que estava aos poucos se transformando em uma caricatura de sua fagulha revolucionária nas décadas anteriores.

Mas Letts é um dos principais personagens da cena pop inglesa não apenas por seu papel como cineasta e diretor de clipes (dirigiu trabalhos de bandas como Psychedelic Furs, Pretenders, Elvis Costello, Eddy Grant, Black Grape e Gap Band, além do Clash) e documentários. Filho de jamaicanos, ele foi um dos primeiros ingleses a entender o caráter revolucionário da música que vinha da terra de seus pais e aos poucos tomava conta do planeta. E ele foi instrumental ao traçar a inusitada conexão entre o punk e o reggae.

"Deixa eu te contar minha história com Bob Marley. Quando o conheci, em 1975, ele achava toda essa história de rock e de punk rock uma bobagem, coisa de moleques, que não ia dar em nada. Mas eu expliquei a motivação daquelas bandas, que eles não eram ricos de classe média e tinham muito a ver com o que acontecia na Jamaica. Ele prestou atenção e passou a ver as coisas de outra forma". Pouco depois o Clash gravou o hit jamaicano "Police and Thieves" como se fosse um punk rock e semanas depois Bob Marley lançava um single cujo lado B não apenas se chamava "Punky Reggae Party", como listava nominalmente bandas como o Clash, o Jam, o Damned e até o Dr. Feelgood, reforçando que "no boring old farts" (nenhum velho chato) estaria lá. Menciono que os 40 anos do punk acontecem junto com os 40 anos de Exodus, o primeiro disco de Bob Marley amplamente político, e ele concorda "não foi por acaso, tudo estava conectado."

O cineasta Don Letts durante um debate nesta sexta-feira na Galeria Olido (divulgação: In-Edit)

Don Letts é a atração da mostra 40 Anos do Punk, que acontece dentro da nona edição do In-Edit Brasil, não apenas com a exibição de seus filmes mas com conversas com o diretor. Uma delas aconteceu na sexta-feira, na Galeria Olido, e a outra acontece neste sábado, às 18h, na Cinemateca. Nesta oportunidade, Letts conversa com o ex-VJ da MTV Gastão Moreira, ele mesmo autor de um documentário sobre o punk brasileiro, Botinada!, também exibido na mostra. Após o debate, às 19h, haverá a exibição do filme Two Sevens Clash de Don Letts, seguido de uma discotecagem do diretor, que também tem uma carreira musical: após o fim do Clash, foi um dos integrantes da banda Big Audio Dynamite, formada pelo ex-guitarrista do grupo inglês, Mick Jones.

Letts, no entanto, não é otimista em relação à onipresença de câmeras em nossa sociedade digital. Ele diz que as pessoas estão apenas preocupadas em registrar a si mesmas, sem dar contexto ou tentar ampliar sua área de atuação. "Acho importante lembrar que tudo que filmamos e colocamos na internet ocupa um espaço 'na nuvem'. Então aconselho sempre a pensar se aquilo que você está publicando vale mesmo à pena ser publicado, estar ocupando aquele espaço", ele me conta, antes de lembrar que há sim novos documentaristas que sabem valorizar o instrumento que têm em mãos. Mas reforça que é preciso ter foco.

A programação do In-Edit Brasil, que começou nesta quarta-feira e vai até o dia 25 de junho, pode ser vista no site oficial do evento.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

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