Você precisa assistir ao "Chatô" de Guilherme Fontes
Antes de esbravejar contra ou ridicularizar Chatô – O Rei do Brasil, o mítico filme que Guilherme Fontes levou vinte anos para nos apresentar, assista-o. É fácil desistir de algo que se arrastou por duas décadas em meio a escândalos de corrupção e superfaturamento, depois que seu idealizador antes galã prodígio se transformou no sinônimo do que há de pior na cultura brasileira. Mas não custa lembrar que este é um filme sobre Assis Chateaubriand, um dos primeiros magnatas de mídia do Brasil que por quase todo o século vinte mandou e desmandou basicamente por ter na mão um império de telecomunicações que permitia que ele manipulasse a opinião pública a fim de chantagear políticos e empresários para obter seus próprios interesses.
Foi sabendo disso que fui entrevistar o próprio Guilherme Fontes para a capa da última edição do ano passado da revista Trip, quando ele reapareceu dizendo que iria finalmente mostrar seu filme – que muitos diziam nem existir. "Esse afã da imprensa em forjar contra minha honra é, entre outras coisas, porque estou fazendo um filme em que o personagem principal, um jornalista, forja contra a honra de muitos ilustres, por muitas décadas no Brasil", ele me explicou num papo que aconteceu na redação da revista. "Eu não sou dono de jornal, rádio ou TV, nem de agência de notícias. Vivo somente com o que produzo como artista. Sou pessoa física, pago impostos sobre o que produzo. Não devo nada a ninguém."
E passou o resto da entrevista (que pode ser lida na íntegra no site da Trip) explicando como Chatô não era apenas um filme mas um projeto que incluía duas séries históricas (já produzidas e exibidas ainda nos anos 90) e também uma superprodução serviria para criar novas oportunidades de filmes para o Brasil, que na última década do século passado tentava se reerguer com dificuldades depois de ter sido abatido quase mortalmente com o fim da Embrafilme, no governo Collor. Contou que prestou todas as contas e que foi vítima de uma conspiração para desmoralizar seu filme e sua história frente à opinião pública. Igualzinho aos inúmeros personagens chantageados pelos jornais, rádios e TV de Assis Chateaubriand entre o início da Era Vargas e o Golpe Militar de 1964.
Getúlio e Chatô
Os vinte anos que separaram Chatô da tela grande viram uma transformação violenta no cinema nacional, que começou a abandonar uma estética própria para mimetizar filmes de ação norte-americanos (como Cidade de Deus e Tropa de Elite) e a safra de programas de TV exibidos em salas de cinema que o diretor Guilherme de Almeida Prado definiu, sem teor pejorativo, como "globochanchadas". Cada vez é menor o espaço para um cinema acanalhado, perverso, despudorado, boca suja, mal encarado, sedutor e sacana, características que unem o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade ao Tropicalismo do final dos anos 60 à fauna humana do mundo Chiclete com Banana dos personagens de Angeli e os filmes da Boca do Lixo. Em tempos politicamente corretos, estes personagens sujos e mal intencionados que antes eram os protagonistas dos grandes filmes brasileiros foram tangidos para fora da história, da mesma forma que seguranças de shopping expulsavam os bondes do rolêzinho.
E como tirar um personagem desses de cena quando o próprio Chatô era a pior flor que se cheire? Fontes prefere transformar a minuciosa biografia que Fernando Morais fez sobre o self made man paraibano (esta sim linear e que dá nome aos bois) em uma intensa alegoria sobre o carnaval de falcatruas que é a política brasileira, onde valores comerciais se misturam a jogos de poder e interesses sexuais, onde privado e público são a mesma coisa ou coisas completamente distintas, dependendo do ponto de vista. Faz isso para ir na essência de uma brasilidade falsa, violência travestida de desejo. Uma farsa em forma de aventura (e vice-versa) em que apenas dois personagens são históricos: Getúlio Vargas (um Paulo Betti irreconhecível) e o própro Chatô (Marco Ricca vivendo seu grande papel).
Tudo que orbita ao redor dos dois é folhetinesco, noveleiro, exagerado, selvagem e intenso. E fictício. O ponto de partida da história é o julgamento que se descortina no inconsciente de Chatô – um programa de auditório misturado com teatro de revista em que ele é colocado como réu e julgado por tudo que fez na vida. Conquistas políticas, comerciais e sexuais são desfraldadas em ordem aleatória, num vai e vém sobre a vida do personagem que expõe sua etiqueta de jagunço, seu apetite estuprador, seus conchavos para conseguir mais dinheiro e mais influência, a forma como ele destruía reputações para criar outras.
Esse programa de TV imaginado pelo protagonista abre uma brecha para a metalinguagem que Guilherme Fontes deita e rola – e, como outros filmes sobre manipulação de mídia (de clássicos como Cidadão Kane e Rede de Intrigas a paródias de humor negro como A Entrevista e O Abutre), brinca o tempo todo com o espectador, entre a caricatura, a pressa, o desespero e a megalomania. Momentos históricos são citados sem que precisem ser mencionados nominalmente – a criação do Masp, o suicídio de Getúlio, o atentado contra Carlos Lacerda, como Chatô atraiu anunciantes para as rádios, a fundação do jornal Última Hora, a criação de uma rede de comunicações de alcance nacional, a chegada da televisão no Brasil. Tudo é contado de forma vibrante e quase histérica que poderia fundir a cabeça do espectador mas que, na verdade, atiça a curiosidade sobre esta qualidade simultaneamente grotesca e apaixonante.
Não apenas sobre Chatô mas sobre o país. O que é este Brasil onde nascemos e vivemos? Quem são as pessoas que conduzem as rédeas da população? Quem manipula os políticos? Quais são os interesses envolvidos por trás de escândalos que funcionam apenas como cortina de fumaça para negociações que acontecem longe da opinião pública? Qual é o papel da mídia nessa história?
Por isso não é apenas um alento que o Chatô de Guilherme Fontes se materializasse vinte anos depois de ter sido concebido – é uma felicidade. Por ser um filme de época, ele não parece ter ficado parado no tempo. E a direção segura de Guilherme é ágil o suficiente para que não pareça ter vinte anos de idade. A única coisa que denuncia a idade do filme é a idade dos atores – todos hoje bem mais velhos do que na época em que as cenas foram registradas.
Brasil de 2015
Sem contar que boa parte das discussões contidas no filme sobre a vida de Chatô falam diretamente ao momento atual do Brasil. Em quase todos os momentos da saga assistimos a um país quase em pé de guerra, nervos à flor da pele, calúnias e bravatas atiradas para todos os lados. Há até um gigante adormecido que está prestes a acordar, como cantavam os protestos de 2013. A carnavalização da roubalheira está diretamente associada ao espetáculo de mídia conduzida por Guilherme Fontes e não é estranho que o próprio diretor apareça como mestre de cerimônias do julgamento internalizado por Chatô fantasiado de dois personagens que começavam suas carreiras quando a vida de Chateaubriand chegava ao fim – Chacrinha e Sílvio Santos.
E aí começa o mistério de Chatô: quem são aqueles personagens fictícios? Rosenberg é mesmo Samuel Weiner? Por que o segurança de Getúlio Vargas tem o mesmo nome que o capanga de Sinhôzinho Malta, na novela Roque Santeiro? Que outras coincidências podem ser pinçadas? Quem é Vivi, interpretada por Andréa Beltrão? Um personagem real ou a encarnação de uma classe social, a personificação de um certo empresariado? E quem são os três puxa-sacos que acompanham Chatô até seu leito de morte? São pessoas de verdade ou representam a mistura de personagens? O que ali é alegoria, o que é paródia, o que é história? O que é história? A lista de perguntas vai surgindo com a mesma velocidade que o filme se desenrola.
Parte dessas respostas podem ser encontradas na própria biografia que originou o filme. Outras delas talvez nunca saiam da cabeça de Guilherme Fontes, que pode te-las deixado propositalmente enigmáticas. E aí começa uma segunda parte – e talvez a mais interessante – deste filme: e se o público começar a fazer as perguntas que o diretor quer que ele faça?
Por essas e outras é que vale a pena assistir Chatô. Que, além de ser um dos principais acontecimentos deste Brasil de 2015 (isso também é uma alegoria?), consegue ser um filme divertido, exagerado e fascinante. Como suas inspirações.
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