"Jessica Jones" passa com folga no Teste de Bechdel
Duas amigas caminham pela rua. Uma delas puxa a conversa:
– Bem… Sei lá. Eu tenho essa regra, sabe… Eu só assisto a filmes que satisfazem três requisitos: primeiro, tem que ter pelo menos duas mulheres no filme que, segundo, conversem entre si e, terceiro, sobre outro assunto que não seja um cara.
Enquanto elas conversam, passam por cartazes de filmes com títulos como "O Bárbaro", "O Justiceiro". A outra responde:
– Bem rigorosa, mas é uma boa ideia.
– É sério. O último filme que eu consegui assistir foi Alien.
Alison Bechdel, hoje uma respeitada autora de graphic novels densas e emotivas como Fun Home (lançado no Brasil pela Conrad e hoje fora de catálogo) e Você é Minha Mãe? (lançado pela Companhia das Letras), era apenas uma fanzineira e quadrinista underground nos anos 80 quando escreveu a tirinha que levaria seu sobrenome para o mundo do entretenimento junto a uma discussão sobre gênero. E graças à tira Dykes to Watch Out For publicada em algum dia de 1985 (reproduzida e traduzida acima) ela tornou-se paradigma para saber se filmes, séries e outras obras passam uma imagem menor da mulher, que quase sempre era retratada como coadjuvante ou par romântico de um protagonista homem.
Não é uma discussão nova e já ecoava na obra de outras autoras, como Virgina Woolf, que em seu ensaio Um Teto Todo Seu, de 1928, falava justamente da representação feminina nas obras literárias. "O único sentimento de Cleópatra com relação a Otávia é ciúme", escrevia no ensaio comentando a peça Antônio e Cleópatra. "Será que ela é mais alta do que eu? Como penteia o cabelo? Talvez a peça não exigisse mais. Mas como teria sido interessante se a relação entre as duas mulheres fosse mais complicada! Todas essas relações entre mulheres, pensei, recordando rapidamente a esplêndida galeria de personagens femininas, são simples demais. Muita coisa foi deixada de fora, sem ser experimentada. E tentei recordar-me de algum caso, no curso de minha leitura, em que duas mulheres fossem representadas como amigas. Há uma tentativa em Diana of the Crossways. Há confidentes, é claro, em Racine e nas tragédias gregas. Vez por outra, são mães e filhas. Mas, quase sem exceção, elas são mostradas em suas relações com os homens."
A própria Alison Bechdel se sente desconfortável ao batizar o teste, já que atribui seus critério à amiga Liza Wallace: "Tenho de confessar, roubei tudo isso de uma amiga na época porque não tinha ideia para minha tira", confessou em entrevista recente. A internet ressucitou a tira em algum momento da virada do século e os critérios seguiram sendo avaliados cada vez mais frequentemente (há um site dedicado a listar os filmes que passam ou não no teste), a ponto de fazer a própria indústria perceber isso.
E talvez pelo fato do teste ter sido proposto por uma quadrinista, uma das principais forças do cinema atual, que nasceu de uma editora de quadrinhos, cada vez mais abre espaço para personagens femininas menos bidimensionais. A Marvel cada vez mais coloca mulheres como protagonistas em suas obras, também por ter entendido que pode atingir um público feminino que não se vê representado no universo de super-heróis.
Nesse sentido, o recém-lançado Jessica Jones – cuja primeira temporada estreou inteira nessa sexta no Netflix – passa folgadamente no Teste de Bechdel. Os poucos personagens masculinos quase não interferem na história principal, à exceção do personagem Kilgrave, interpretado por David Tennant, que não por acaso é o grande vilão da série e cujo superpoder, ironicamente, é fazer que as pessoas façam o que ele diga. Jessica Jones teve uma relação anterior à história do seriado com o vilão e hoje ela luta para que ele não influencie suas ações – uma bela metáfora num seriado feminista.
Volto a falar sobre o seriado a tempo de todo mundo conseguir assistir tudo, assim posso comentar os spoilers à vontade.
(E a imagem que ilustra esse post é uma montagem que um fã deixou na página do Facebook do seriado – e se você não entendeu, é porque não viu o vídeo viral da outra Jessica)
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