A sabedoria de Luiz Carlos Miele
A morte de Miele não diz respeito apenas ao fim de uma era do showbusiness brasileiro. Contemporâneo da bossa nova, ele viu nascer uma nova forma de fazer entretenimento no Brasil que não precisava apelar para o popular e para vulgaridade. Tanto que seu único arrependimento, como revelou há três anos em entrevista ao UOL, foi ter feito o raso Cocktail, programa do SBT da última década do século passado que era esperado por uma geração de adolescentes pelo simples fatos que gatinhas colocavam os peitos para fora.
Naqueles tempos pré-Pornhub, a nudez ainda era um delito romântico, a objetificação das mulheres não estava em pauta e Miele no fundo sabia que estava apelando. Sua ideia original era fazer o que Hugh Hefner havia proposto quando criou a Playboy – misturar belas mulheres a uma cultura de refinamento – e apresentar Millôr Fernandes para a massa televisiva, mas o pragmatismo brega de Sílvio Santos destroçou seu conceito, como revelou naquela entrevista:
"Quando o Silvio Santos me chamou para fazer aquilo, eu pensei em usar a desculpa da nudez para levar para a TV o que a Playboy fazia. Ou seja, a Playboy até hoje, se você for ler, tem a primeira seção da mulher nua, a outra seção que é jazz e popular, depois outra seção com mulher nua, depois outra com o melhor do cinema… Pensei: 'vou levar isso para a TV'. E gravei o primeiro programa assim, discutindo com o diretor. Deixa eu colocar aqui uma frase do Millôr Fernandes? E ele levou a gravação para o Silvio Santos, que me chamou e falou assim: 'você não entende nada de SBT. Isso aqui é um programa assim, assim, assim para atingir o público das onze horas da noite e se você quiser fazer é assim'. E eu fiz. Mas não que eu tenha gostado."
Neste século, Miele era mais conhecido como ator, embora apenas interpretasse versões distorcidas de sua própria personalidade (contudo há quem defenda que isso é atuar). Fez séries, filmes e musicais sempre espelhando o personagem que criou para si mesmo – um bonachão alto astral que mistura anfitrião com mestre de cerimônias, bon vivant com a alma da festa. Trabalhava na ribalta e nos bastidores, cantava, atuava, produzia e celebrava como se não houvesse diferença entre essas atividades. Antecipou o dia-a-dia deste século, em que não há fronteiras entre público e privado, entre gêneros musicais, entre mídias e formatos. Sempre satélite de movimentos culturais inteiros, ele não se contentava em ser coadjuvante de cenas alheias e era o centro do próprio sistema solar. Um show de um homem só, que conviveu com Roberto Carlos, Elis Regina, Dorival Caymmi, Liza Minelli, Vinicius de Moraes, Gene Kelly e Ronaldo Bôscoli.
Uma estrela que emitia boas vibrações para onde quer que fosse, que se apaga nos fazendo justamente questionar a ausência desse talento em nossos tempos. As redes sociais e a avalanche de informações a que somos submetidos hoje nos transformou em uma massa de reclamões, entrando em brigas inúteis movidas apenas por vaidade, que nos cegam às boas notícias deste século. Estamos vivendo as transformações culturais mais importantes desde a revolução industrial e ficamos batendo boca uns com os outros como torcedores fanáticos de torcidas organizadas. Como dizia "Ac-Cent-Tchu-Ate the Positive", velha canção eternizada por Bing Crosby e regravada por Aretha Franklin e Paul McCartney, e que é a cara do velho showman: "Você tem de acentuar o positivo/ Eliminar o negativo/ Agarre-se ao afirmativo / E não brinque o senhor do meio".
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