Elza Soares lança um dos melhores discos de 2015 num show impecável
Cordas e flauta se entrelaçam em uma harmonia vaga, enquanto um telão detalha os créditos do espetáculo que irá começar. As cortinas do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, que completa exatos dez anos esta noite, estão fechadas e o desenho musical formado pelos instrumentos lentamente aumenta a expectativa no público – os retardatários pegam seus lugares, as conversas diminuem, a iluminação discreta vai minguando até que está tudo fica escuro, o telão se apaga e é suspenso e as cordas ficam tensas, à espera de um grande momento.
Este acontece quando as cortinas se abrem e Elza Soares é revelada. Ela é a primeira imagem que vemos, já sentada ao centro em um trono que se ergue metros sobre o palco, soberana ao centro de seu séquito atual. À sua frente, uma escadaria funciona como continuação de seu vestido, que se esparrama até a ribalta; às suas costas, um tecido triangular ergue-se a partir de seu trono criando um rufo megalomaníaco que ergue-se de Elza ao teto. Aos seus pés, o quarteto de cordas Quadril e quatro músicos às laterais – à esquerda, o guitarrista Kiko Dinucci e o violonista Rodrigo Campos; à direita, o flautista Cuca Ferreira e o baixista Marcelo Cabral. Nas extremidades do palco, aos pés como o quarteto de cordas, dois percussionistas sentam-se de frente um para o outro: à esquerda Felipe Roseno e à direita o multiinstrumentista Guilherme Kastrup, maestro e mentor da viagem a que fomos conduzidos no último sábado, dia 3.
A Mulher do Fim do Mundo poderia ser encarado como desses projetos em que músicos mais jovens se juntam para reverenciar a carreira de um ídolo do passado ainda em vida, mas o caso aqui é bem diferente – de ambos os lados. O grupo reunido por Kastrup e seus copilotos Rômulo Fróes e Celso Sim é uma das forças-motrizes da nova cena paulistana, conhecido por experimentar as fronteiras entre a vanguarda e a canção, desbravando o samba e o ruído ao mesmo tempo em que faz ponte com diferentes gerações da cultura da cidade: o punk rock dos anos 80, os sambas dos anos 50, o jazz dos anos 60, o Lira Paulistana. Não se transformaria em mera banda coadjuvante para celebrar os valores já conhecidos de Elza.
Elza, por sua vez, ultrapassou o papel de musa há anos e vem desenvolvendo um diálogo com gerações de músicos mais novos desde o início do século, sempre disposta a uma boa briga. Em Do Cóccix ao Pescoço (de 2002) ela reuniu Carlinhos Brown, Marcelo Yuka, Arnaldo Antunes e Seu Jorge a Cole Porter, Chico Buarque, Luiz Melodia e até Gil e Caetano (justo com "Haiti"). Em Vivo Feliz (de 2004), deixou-se levar por Arthur Joly rumo a clássicos de Zé Kéti e Paulo Vanzolini mas também de Fred Zero Quatro e Nando Reis. Até mesmo o DVD ao vivo Beba-Me (de 2008), em que ela só regravou clássicos na sua voz, teve espaço para o hino funk "Rap da Felicidade".
Portanto, o que Guilherme Kastrup propunha não era uma celebração nem uma festa, mas um confronto – não de ideias, mas de sonoridades, musicalidades. Por isso juntou um guitarrista punk convertido pelo terreiro (Kiko), um sambista que flerta com o noise (Rodrigo), um baixista que merece considerações específicas (Cabral), um quarteto de sopros da pesada (Cuca, que além de flauta, toca sax barítono, faz parte da metaleira do Bixiga 70, como Daniel Nogueira – sax tenor e flauta -, Daniel Gralha – trompete – e Doug Bone – trombone) e um quarteto de cordas quase sutil (o Quadril, formado por Micaela Nassif, Alice Bevilaqua, Elisa Monteiro e Mariana Amaral), além de dois vocalistas vindo de extremos opostos – o fino e contido sambista Rômulo Fróes e o desbocado e elástico ator Rubi. Conduzindo o encontro a partir de um conjunto de instrumentos de percussão ao redor de uma bateria, e encarando seu cúmplice Felipe, com outro grupo de instrumentos de ritmo, Kastrup construiu um disco agressivo e intenso como 2015, fazendo Elza soar atemporal, como o conjunto de músicos viaja por diferentes tempos e gêneros musicais – às vezes colidindo-os abruptamente, às vezes fazendo um corroer o outro por dentro. Em disco, A Mulher do Fim do Mundo (que pode ser ouvido na íntegra no site do Natura Musical), é um passo adiante na carreira de todos os envolvidos, um salto no abismo premiado com a recompensa do risco vencido. É um dos melhores discos de 2015, não apenas do Brasil.
No palco, do confronto fica apenas a intensidade. O clima é de aberta reverência, a começar pela disposição do cenário. Elza Soares no centro magnético de todas as atenções não precisa nem sequer levantar-se para exercer sua majestade. Ao seu redor, os músicos são sua própria corte, num enorme beija-mão que dura todo o show – e que cada um dos músicos (ou grupo de músicos, à exceção dos percussionistas) flerta sozinho com a voz da cantora. E além das músicas do disco – todas tocadas ao vivo, numa tendência que vem se firmando cada vez mais na música brasileira de 2015 -, o show ainda trouxe versões a caráter para clássicos na voz de Elza, como "Pressentimento" (de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho), "Volta por Cima" (de Paulo Vanzolini), "Malandro" (de Jorge Aragão) e a contundente "A Carne" (de Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti).
A apresentação, como o disco, começa com o poema "Coração do Mar" de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik, uma ode cantada a capella que fala em uma "terra que ninguém conhece", e que "contém o próprio mundo como hospedeiro", antes de desvendá-la como "um navio humano quente, negreiro do mangue". Sem nenhum outro instrumento acompanhando-a, Elza domina o auditório apenas com sua voz, sem esforço. E entra a faixa-título, uma marcha de carnaval apocalíptica, em que todos os músicos presentes se embrenham num samba buarqueano que termina com Elza, sozinha, pedindo e dizendo que irá cantar até o fim.
Pela próxima hora, Elza saiu desbravando as próprias fronteiras, dialogando com cada um dos músicos: seja no tom de desencanto da "Dança" cantada com Rômulo Fróes, na intensa "Pra Fuder" e na elétrica "Luz Vermelha" cujo cordão é puxado por Kiko Dinucci, na rotineira "Firmeza?" ao lado de Rodrigo Campos, na incisiva "Benedita" cantada ao lado do ator Rubi. Entre estas, por vezes desafiava improvisos fortes do naipe de metais ("Firmeza?", "Maria da Vila Matilde", "Pra Fuder") ou momentos delicados ("O Canal", "Malandro") com o quarteto de cordas.
Antes de um destes momentos – na cristalina "Solto" -, ela saudou o baixista Marcelo Cabral, que também era autor dos arranjos para cordas do espetáculo. Cabral é o coringa deste jogo, um músico versátil e ágil na mesma medida. E mesmo que Rodrigo passe do violão à guitarra, que Kiko faça a microfonia sambar e que Kastrup e Roseno soem tão complementares como um único músico, é Cabral quem destoa, indo da simplicidade melódica à pegada quase punk rock, além de segurar linhas de baixo eletrônicas num sintetizador, o timbre que mais entorta tanto o disco quanto o show. É uma estranheza boa, que moderniza o espetáculo em sua base e não entra como mero tempero artificial e sim como base estrutural de algumas canções, como "Luz Vermelha" e "Benedita", no breque robótico de "Pra Fuder", até ao estranho vocal de apoio eletrônico em "Dança". Improvável arma secreta da Mulher do Fim do Mundo, os timbres digitais disparados por Cabral dão um tom inusitado e um frescor urbano a um disco que por vezes soa como roda de samba, outras como solenidade espiritual, sempre elevando a voz e a personalidade de Elza cada vez mais alto. Até o fim.
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