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Nicky Hornby cogita continuação para Alta Fidelidade, 20 anos depois

Alexandre Matias

12/03/2015 09h41

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"É assim que você começa uma coleção de música se você nasceu entre 1940 e 1990: você compra um disco e por um algum tempo esse disco é tudo o que você tem. Você gosta de umas faixas mais que outras a princípio, mas como você tinha apenas oito ou 10 ou 12 delas (ou talvez um pouco mais, se foi um recém-lançado CD), você não poderia se dar ao luxo de tocar as favoritas, então você escutava o disco várias vezes até gostar de todas as músicas da mesma forma. Algumas semanas depois, você compra outro disco. Depois de um ano você tem 15 ou 20, depois de cinco anos, algumas centenas."

"É assim que você começa uma coleção de música nos primeiros anos do século 21: você dá um iPod pra um amigo ou pra um irmão mais velho ou pra um tio e diz 'enche pra mim'. E de repente você tem alguns milhares de faixas, cuja maior parte delas você nunca iria ouvir. Se você é um adolescente hoje, você nem irá se incomodar com todo esse problema, porque toda a música que já foi gravada na história do mundo está no seu bolso, no seu telefone. Nós sabemos, porque é o jeito que o mundo sempre funciona, que adolescentes daqui a dez ou vinte anos estarão rindo e balançando suas cabeças em relação ao primitivismo e a inconveniência do Spotify – 'Você tinha que esperar alguns segundos pra baixar?', 'Não tinha internet em todo lugar?', 'Você tinha que tocar numa tela?' Mas neste ponto é difícil imaginar como o consumo de música do futuro poderá ser ainda mais rápido e mais barato."

Esse é Nick Hornby, que, convidado pela revista Billboard, escreveu sobre uma possível continuação do livro que o colocou no mapa pop mundial, Alta Fidelidade, lançado há 20 anos. Pra quem não lembra, o livro inglês conta a história de Rob Fleming, dono de uma loja de discos que vive sua crise do meio dos 30 anos entre listas de "cinco melhores" qualquer coisa – de melhores músicas pra abrir o lado A de um disco a melhores beijos de sua vida. Interrelacionando hits e fracassos da própria vida com compactos raros, edições originais em estado perfeito e capas icônicas, o livro descreve uma adolescência tardia misturada com dramas de relacionamento e uma boa trilha sonora e foi adotado por indies nerds de música que se identificavam com os personagens da loja de Rob, especificamente o próprio.

Hornby acertou um nervo geracional que ecoou por todo o planeta, especialmente em jovens que almejavam virar trintões como Rob – entre coleções gigantescas de discos que justificavam discussões pesadas sobre riffs, formações de banda, significados de letras. O culto cresceu a ponto de transformar o livro em filme, levando a vida de Rob de Londres pra Chicago e "traduzindo" Fleming pra Gordon, vivido por John Cusack. Juntos, filme e livro contavam a mesma história: não dá pra se considerar adulto enquanto escolhas como "qual a melhor fase do David Bowie?" ou "que disco você levaria para uma ilha deserta?" forem questões as mais importantes de sua vida. Mais do que uma fábula sobre amadurecimento masculino, Alta Fidelidade é um clamor pelo fim dessa adolescência esticada, que leva possíveis pais de família a se comportar como crianças antissociais que só ficam à vontade entre seus pares.

20 anos depois, Hornby acha fácil prever algumas questões relacionadas ao fim do livro/filme, mas trava na terceira principal questão. Ele assume que Rob e Laura tiveram filhos mas não são mais um casal, porém não consegue imaginar o que Rob estaria fazendo hoje. E claro que isso está relacionado à mudança de comportamento em relação à forma como consumimos música no século 21 – é o cenário descrito pelo escritor no início do texto que inevitavelmente matou as pequenas lojas de disco. E que fim levaram seus donos e funcionários? Ao procurar pelo destino de seus conhecidos vendedores de discos e vendedores de discos de conhecidos seus não achou nenhum padrão. Cada um tomou um rumo profissional completamente diferente após abandonar o mercado fonográfico: um virou carteiro, outro garçom, outro tem sua vinícola, baterista, terapeuta…

Hornby até comenta a ascensão do mercado de vinis, que movimenta 9 milhões de discos em 2014 só nos Estados Unidos, mesmo sendo mais caro do que o que custava em outra época. E chega a descrever uma pequena loja de discos próxima de sua casa que está abrindo uma filial no bairro londrino equivalente ao Brooklyn nova-iorquino, epicentro hipster. Mas não percebe que, provavelmente é aí que Rob estaria em 2015.

Não necessariamente dono de uma loja de discos, faturando com o revival do vinil. Mas é fácil imaginar que uma vez que sua loja tenha falido que ele tenha buscado outras formas de ganhar dinheiro – até que, de repente, lojas de discos voltam a fazer sentido. E o sentido original: as pequenas lojas que movimentam o cada vez mais agitado Record Store Day em nada se parecem com as megastores que arrasaram as pequenas lojas de discos de vinte anos atrás. Lugares feitos para atrair pessoas ao redor de um certo tema, um mesmo assunto.

Museus, livrarias, bibliotecas, as falecidas locadoras e lojas de disco encaixotam itens lado a lado a partir de uma ordem pré-estabelecida e convidam seus visitantes a navegar por eras e temas diferentes. São espaços de convívio que na maioria dos casos não cobram entrada e deixam a visita ao gosto do freguês. Até uma balada, onde Rob termina o livro, discotecando, tem mais proximidade com uma loja de discos do que espaços como teatros, cinemas ou casas de show, que exigem a atenção para uma atração com duração determinada que raramente ultrapassa as três horas. Uma loja de discos convida os transeuntes a entrar para ouvir música, mesmo que para isso tenha de confrontar esnobes críticos frustrados que trabalham nestes lugares.

Com a digitalização da música, estes lugares desapareceram para serem substituídos por salas de bate papo online, listas de discussão, fóruns e redes sociais, onde fãs de música sozinhos em seus computadores interagem com pessoas do mundo sem o menor contato físico. Os relacionamentos, como a música, perderam o tato e o atrito entre opiniões perde o rumo quando apenas online. Por isso, o revival do vinil não tenha a ver apenas com uma tendência de consumo retrô e sim com uma necessidade de as pessoas voltarem a se encontrar para qualquer coisa, que seja apenas conversar sobre música. Não é um revival de uma mídia pura e simplesmente, mas também de um hábito de consumo Acredito que essa mesma motivação de sair da internet é o que fez manifestações, passeatas, festas na rua e eventos ao ir livre se tornarem cada vez mais populares nos últimos anos.

E voltando para Alta Fidelidade 20 anos depois, é fácil imaginar Rob lendo escondido notícias sobre a volta do LP, comemorando sozinho cada nova loja que abre em Londres ou Chicago e querendo se enturmar com os jovens lojistas, primeiro para entender suas motivações e depois, claro, para esnobá-los com sua sabedoria de vendedor de discos de uma época em que existiam músicas raras. Antes de começar a enumerar os cinco discos mais raros de todos os tempos…

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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