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Kendrick Lamar mostra para que servem premiações como o Grammy

Alexandre Matias

16/02/2016 11h08

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Todos acompanham. Só no proverbial recanto offline conseguimos nos esconder de premiações anuais, que em diferentes etapas – indicações, apostas e especulações, festa e apresentações musicais, consequências das premiações e repercussão da festa – passam a superlotar sazonalmente nosso campo de visão midiático. Sejam programas especiais de emissoras de TV ou bailes de gala do cinema, convescotes anuais de indústrias decadentes ou premiações de videoclipes, esses eventos sempre respingam em nossa atenção, principalmente nestes últimos dez anos de superpopulação digital e auge das redes sociais.

Mas… Melhor em quê? Melhor do que o quê? Melhor de um ano? Melhor? Adjetivos e comparações perdem completamente o sentido neste século em que o mainstream encontra-se cada vez mais diluído e desencontrado – principalmente em relação à realidade. Tudo bem que foi em 2015 que Taylor Swift mais faturou com seu disco mais recente, mas ele é um disco de 2014 em todos os sentidos: seus hits foram conhecidos naquele ano, a cantora causou polêmica tirando suas músicas do Spotify naquele ano e ganhou o único disco de platina de 2014. Os feitos de Taylor Swift em relação a 2015 são dignos de nota (a turnê cheia de convidados famosos a cada novo show, a rusga com a Apple Music, o clipe de "Bad Blood"), mas são todos decorrentes do sucesso que o disco 1989 causou há quase dois anos. Mas, segundo o Grammy, o grande disco de 2014 é Morning Phase, do Beck. Um grande disco, mas nem de longe tão importante quanto o de Taylor Swift. O prêmio parece coroar o conjunto da obra de Beck mais do que saudar o grande disco daquele ano.

E da mesma forma que Taylor Swift dominou 2014, Kendrick Lamar foi o grande nome de 2015 para a indústria fonográfica – não apenas como campeão de vendas e vencedor de recordes, mas, principalmente, como autor. Seu To Pimp a Butterfly é o disco que o hip hop americano estava esperando desde a exaustão do gangsta rap.

Por melhores que tenham sido os nomes que vieram depois dos anos 90 (e a lista é imensa – Outkast, Eminem, Nas, Common, Kanye West, Lil Wayne, Kid Cudi, Drake, Jay-Z), nenhum fez um disco que chegasse à estatura deste To Pimp a Butterfly, um disco tão importante como afirmação política quanto por suas explorações musicais. Não é apenas um artefato raro no século 21 como um disco de rap tão maiúsculo, mas especificamente por ir para além das fronteiras do hip hop. O disco do ano passado restabelece esta cultura como parte de uma longa tradição negra que remonta o início do século passado os negros norte-americanos entenderam que podiam alcançar um público maior e, mais ainda, reunir os pedaços de negritude que haviam sido dizimados pelos séculos de escravidão para recuperar seu próprio sentido de autoimportância. O disco de Kendrick Lamar de 2015 lembra que o hip hop faz parte de uma genealogia que começa com o blues, passa pelo gospel, a soul music, os movimentos por direitos civis, o funk e culmina com o rap, mas sem esquecer do seu passado. É uma conquista semelhante à chegada de Obama à presidência dos EUA – não por acaso Obama é fã.

Por isso, por mais que o disco de Taylor Swift de 2014 tenha provocado abalos sísmicos ao transformar seu pop country quase descartável numa versão ainda mais mainstream do feminismo girl power das Spice Girls, o terremoto de Kendrick Lamar o ofusca em vários outros níveis, que faz que a manchete da premiação ("Taylor Swift vence Kendrick Lamar") pareça absurda por contrapor discos de diferentes eras como se pertencessem a um mesmo período.

É um dos problemas deste tipo de premiação – essa rígida restrição temporal perdeu o sentido dentro da fluidez e velocidade das informações. Só para ficar num exemplo próximo ao Grammy, o disco que Beyoncé lançou no final de 2013 – outra forte afirmação musical e política, batizada apenas com seu nome – ficou de fora das listas de melhores daquele ano pois elas foram definidas no início de dezembro, quando ninguém sonhava que ela fosse lançar um novo disco (e ela o fez de surpresa, outra característica dos tempos atuais). Outro problema é contrapor uns aos outros como uma grande competição, em que Taylor Swift "vence" Kendrick Lamar porque ganhou um prêmio que é mais importante que os de Kendrick, mesmo que o rapper tenha ganho cinco prêmios e a cantora apenas três (sendo que os dois dividiram um deles – pois Kendrick participou do clipe de "Bad Blood" de Taylor Swift).

Mas então para que serve esse tipo de premiação? É apenas um prêmio tapinha-nas-costas que ajuda carreiras de artistas iniciantes e consagra carreiras de artistas experientes? A meu ver, não.

Creio que essas premiações tendem cada vez mais a servir menos como consagração mercadológica de um produto artístico e mais como um panorama do que está acontecendo com um determinador setor em um determinado período. Não serve apenas como uma forma de mostrar quem tem mais estatuetas que o outro, quem ganhou mais que quem e quem nunca ganhou (Kubrick e Hitchcock nunca ganharam um Oscar, não custa lembrar). E sim um programa de TV que fotografa o que está acontecendo em uma época chamando os artistas mais importantes do ano para se apresentarem ao mesmo tempo. E isso tem muito mais a ver com o que os artistas podem mostrar do que o que eles simplesmente já mostraram meses antes. Assim, Taylor Swift fez bonito com sua versão de "Out of the Woods", Lady Gaga se esforçou mas não ficou à altura do homenageado David Bowie e Adele sofreu para cantar. Mas aí veio o Kendrick Lamar. E meu amigo…

Ao enfileirar dois de seus maiores hits do ano passado, ele cutucou várias feridas enquanto celebrou a cultura negra de forma impressionante. Começou sua performance com "The Blacker the Berry", que abre com a sintomática frase "eu sou maior hipócrita de 2015!" repetida para enfatizar o que iria fazer, antes de entrar com negros acorrentados fazendo o melhor paralelo entre a época da escravidão e os dias de hoje, sublinhando que as cadeias são as novas senzalas. A música não faz a menor concessão e a letra aperta forte a ferida do racismo:

"Eu sou afro-americano, sou africano
Sou preto como a lua, pertenço a uma pequena aldeia
Perdoe minha resistência
Vim da base da humanidade
Meu cabelo é crespo
Meu pau é grande
Meu nariz é redondo e largo
Você me odeia, não é?
Você odeia o meu povo, seu plano é exterminar minha cultura
Seu demônio de merda, quero que você reconheça que eu sou um macaco orgulhoso
Você vandaliza minha percepção mas não consegue tirar meu estilo
E isso é mais que uma confissão"

Uma letra agressiva sem papas na língua que funciona como trilha para a senzala que retrata, antes de começar a celebrar a cultura negra em frente ao enorme fogueira, com dançarinos em roda e emendando com a excelente "Alright", que tem o mesmo vigor político que "I Feel Good" de James Brown (uma canção política, não custa frisar) e que repete antes de seu refrão que:

"Bem você sabe
Já nos machucaram
E nos jogaram pra baixo antes, nigga
Olhando para o mundo tipo "pra onde vamos?"
Nigga, e nós odiamos a polícia
Que nos mortos na rua com certeza"

Antes de entrar no mantra autossugerido que "nós vamos estar bem", intercalado pelos "nigga" que atordoa tanto por sua referência ao racismo como por deixar claro para quem a música se refere. Uma apresentação forte e bem incômoda, distante do mero entretenimento que se espera deste tipo de premiação. Tão importante quanto a apresentação de Beyoncé na final do campeonato futebol norte-americano deste ano, quando ela mostrou sua nova música "Formation" apertando teclas semelhantes relacionadas ao racismo que as pressionadas por Kendrick. A apresentação do rapper terminou com um mapa do continente africano com a palavra "Compton" no meio – referência não só ao bairro de origem de Lamar como berço de todo o gangsta rap – e uma das periferias mais violentas dos EUA. A metáfora de duas mãos é evidente: há um continente e uma cultura inteira que ainda são vistos apenas como uma favela, um incômodo social, ao mesmo tempo em que cada favela no mundo todo carrega esses mesmos continente e cultura dentro de si.

É pra isso que serve esse tipo de show: menos como premiação e mais como vitrine para os verdadeiros talentos do ano.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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