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E se os terroristas tiverem escolhido um show de rock de propósito?

Alexandre Matias

17/11/2015 18h51

Show do Eagles of Death Metal em Dublin, no dia 12 de novembro de 2015 (foto do Facebook do grupo)

Show do Eagles of Death Metal em Dublin, no dia 12 de novembro de 2015 (foto do Facebook do grupo)

As imagens abaixo são assustadoras por serem corriqueiras. Elas foram registradas e publicadas pelo celular de Tuesday Cross, namorada de Jesse Hughes, um dos guitarristas da banda norte-americana Eagles of Death Metal. Tuesday faz uma cobertura informal dos shows da banda de seu namorado usando o aplicativo Periscope, que permite que os registros sejam transmitidos ao vivo, e circula por diferentes pontos da casa de show, enquanto conseguimos ver e ouvir o grupo apresentando-se e saudando o público com frases clichês de banda de rock.

O que torna o vídeo (na versão acima editado pelo New York Post) tão banal em algo perplexo é que a apresentação filmada aconteceu na casa de shows parisiense Bataclan, palco do pior atentado terrorista desta década na Europa, na última sexta-feira, onde uma centenas de fãs foi assassinada de forma brutal. Sem o massacre que não foi filmado, a transmissão mostra cenas que todos já vimos e vivemos e que ganham uma proporção desalentadora justamente por seu aspecto cotidiano.

A sensação de angústia ganha contornos mórbidos quando uma série de curiosidades e detalhes comuns são colocados à luz da carnificina. O nome da banda – Eagles of Death Metal – não quer dizer literalmente "Águias do Death Metal" ou ainda mais literalmente "Águias do Metal da Morte", mas é uma piada com a banda norte-americana Eagles – aqueles, de "Hotel California". A banda de Hughes brinca ser o equivalente dos Eagles na cena de death metal, só uma piada irônica. A ironia vai além com os gritos de saudação ao rock e à noite que ouvimos vindo do palco para o público e termina com uma versão para uma música do grupo Duran Duran – "Save a Prayer", cujo refrão fala em lembrar-se de rezar por alguém na manhã seguinte. É tudo irônico mas tornou-se tétrico após o acontecimento fatal.

Não duvide que os terroristas tenham escolhido este show de propósito – ao atacar a apresentação de uma banda que se batiza com um nome desses, ainda mais numa sexta-feira 13, os assassinos reforçam os clichês de como os muçulmanos veem a cultura ocidental. Uma cultura que, querem nos fazer acreditar, cultua o pecado e a heresia.

O terrorismo pode ser aleatório e vingativo, impulsivo e sem sentido, mas ele também pode ser frio e calculista, preciso e cirúrgico. Neste segundo caso, tudo pode ser usado como símbolo e como representação. O ataque aconteceu em Paris não por outro motivo. Usou um estádio de futebol e um show de rock também como um ataque iconográfico, como já havia acontecido no início do ano no ataque à redação do Chalie Hebdo.

Atacar a apresentação de uma banda de rock chamada Eagles of Death Metal tem um propósito parecido com o ataque ao tabloide de humor barra pesada. Querem polarizar ainda mais a discussão, não apenas atacando o centro de uma civilização como fazendo-a odiar outra. Associar o Islã ao terrorismo é equivalente a associar a Igreja Católica à pedofilia, esquecendo convenientemente países muçulmanos em que as mulheres podem ser eleitas e que os direitos civis são respeitados.

Um gesto terrorista num show de rock inevitavelmente trará questões sobre segurança nos shows, causará inconvenientes e tornará as apresentações ao vivo ainda mais burocráticas. É um ataque às nossas liberdades, que educadamente abrimos mão em prol da segurança de todos, vivendo em uma sociedade de controle cada vez mais rígido. Mas também é uma forma de distorcer clichês e nos fazer acreditar em verdades falsas. O Estado Islâmico é conhecido por saber lidar com esse poder midiático e embora não tenha nenhum ícone tão forte quanto Osama Bin Laden (talvez de propósito), distorce o inconsciente coletivo para que os extremos fiquem ainda mais radicais.

Cuidado redobrado neste estranho 2015 que finalmente vem chegando ao fim.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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