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"TransmutAção" é o disco mais político de BNegão e Seletores de Frequência

Alexandre Matias

04/09/2015 17h55

BNegao

TransmutAção, o terceiro disco de BNegão e seus Seletores de Frequência, começa à espreita, entre sons da floresta, uma percussão esparsa e a saudação em iorubá que batiza a cursa introdução: "Agô", cantada pelo percussionista Alexandre Garnizé, que pede licença e anuncia a chegada. A faixa funde-se num dub de baixo marcado que saúda o anfitrião do disco.

BNegão começa a cantar a faixa "Dias da Serpente" como um profeta entre ecos e chocalhos: "Aqui estamos / Nesse planeta, nesse momento / Estamos / O que construímos e o que desconstruímos até aqui / Estamos / O que somos / O que achamos que somos / Células, ossos, carne e sangue, cromossomos / Espíritos que se movem agora e sempre / Realidades, dimensões, agora e sempre". A banda dá uma quebrada rápida e ele retoma o discurso: "A serpente devorando a sua própria cauda / A serpente / Num último impulso, o mais violento e devastador circuito emocional negativo / Espíritos vagando com ou sem seus corpos à procura de um propósito, significado ou sentido / O momento do vento é forte / Momento de vento forte / Dias da serpente / Enxergar amplamente, enxergar além, é vital pra sobrevivência da sua mente / Transmutação é a palavra-chave / Dias luminosos virão, dias trevosos estão / Dias da serpente / Presos no passado, com saudades do futuro / Ausente / Longe do presente."

Lançado esta semana, TransmutAção pode ser baixado gratuitamente no site do Natura Musical, edital que financiou o novo disco do ex-Planet Hemp. "A gente nem achava que ia dar certo a história do edital da Natura, a gente se inscreveu mas não botava fé que ia passar", me explica por telefone Bernardo, o BNegão. "Estávamos com foco total em outro projeto, que era o nosso primeiro disco instrumental, mas na hora em que saiu o resultado a gente parou tudo e começou a fazer esse disco do zero."

"O disco é totalmente do momento", ele continua, "Ao contrário dos dois primeiros discos (Enxugando Gelo de 2004 e Sintoniza Lá de 2009), só tinham duas músicas que já tavam prontas, que era a 'Surfin' Astakte', que ia pro disco instrumental e a gente resolveu incluir nesse, e a faixa que virou 'No Amanhecer', que tinha uma pegada mais samba-jazz e que a gente levou pro lado da gafieira quando começou a trabalhar. Todo o resto começou quando soubemos do resultado e saiu a partir das alquimias que costumamos fazer."

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O resultado é um disco plural e abrangente, que flerta tanto com o reggae quanto com o samba, o hip hop e o funk dos anos 70, retomando o caldeirão de influências musicais do primeiro disco. Além da brasileiríssima "No Amanhecer", o disco ainda traz uma versão clássica para o samba fúnebre "Fita Amarela", a roda eletrônica "No Ar (Convocação)", o afrodub "Nós (Ponto de Mutação)", a pesada "100% (No Momento)", a eletrônica "Mundo Tela", a surf music "Surfin' Astatke" e o groove hipnótico de "Giratória (Sua Direção)". É um disco multifacetado que se une a partir da onipresença da percussão, crucial neste novo trabalho.

"A percussão no nosso primeiro disco entrou apenas como sample, porque a gente não tinha percussionista", continua Bernardo. "No segundo disco a gente já tava com as músicas feitas, aí a galera entrou no espaço que dava – 'tem um espacinho aqui, bota percussão, aqui também cabe uma percussãozinha' e tal. Mas nesse disco a gente pensou várias músicas a partir da percussão. A gente acabou não conseguindo fazer tanto isso, mas conseguiu pensar em vários espaços pra percussão poder fluir, que não tinha nos outros discos, que ficava uma coisa reduzida, quase como uma figuração. Era importante sim, mas ficava mais coadjuvante. E agora várias músicas tem a percussão como a mandante do crime."

Composto no estúdio
O disco foi composto praticamente no estúdio e mais uma vez produzido pelo próprio BNegão, que contou com MPC (do coletivo carioca Digitaldubs) e o produtor Mario Caldato (conhecido por mixar os trabalhos dos Beastie Boys) para ajudá-lo na mixagem. "Quando produzo os discos dos Seletores, normalmente o que eu busco é fazer alguma coisa que a gente ainda não fez", ele explica seu processo de produção. "Então a minha função é tentar determinar qual é a nossa atual zona de conforto pra começar a nos empurrar pra fora dela."

E à medida em que as músicas foram sendo cozinhadas no estúdio, Bernardo começou a compor as letras na hora. "Fui fazendo as letras nos dias das gravações, no próprio estúdio ou na madrugada anterior, virando a noite pra fazer. Quando acabou tudo e aí eu botei as músicas na ordem do disco, como tá agora, e aí eu vi o que aquilo me trazia, me transmitia, qual era a ideia mestre da parada – e uma delas era essa ideia de transmutação mesmo, desde a primeira música até a última. Foi a última coisa que definimos, o título."

Política
E ao falar sobre mudança, ainda mais em pleno turbulento 2015, ele deixou o disco com uma conotação política que vai além de discussões partidárias ou acusações ideológicas. "Eu queria falar sobre a necessidade de mudança, mas não queria cair num clichê de política, queria falar de coisas diferentes. Por isso me policiei nas letras, pra deixar bem claro essa diferença", ele conta, antes de fazer a ressalva que "é impossível eu não fazer um disco político. Eu sou filho de um cara que juntava a família pra ler o jornal e ensinava a gente a fazer mais de uma leitura sobre a notícia, pra ler nas entrelinhas. Por isso quando eu falo do (intelectual) Darcy Ribeiro no disco, isso não é de hoje; Darcy Ribeiro é meu ídolo desde que eu sou moleque. Não tô falando disso de bobeira, ele tá no meu DNA. E ele é um cara que é um mestre revolucionário de mudança, que já falava na época dele do que tá rolando hoje em dia – que tudo se resume a uma guerra de poder que se perde em discussões rasteiras e a galera não tá mexendo onde tem que mexer, porque o buraco é mais embaixo."

Bernardo explica que essa abordagem política de sua obra, na verdade, é a motivação número 1 de seu trabalho. "Nunca tive intenção de tocar para ser conhecido. Eu comecei a me expressar com música pra falar as paradas que eu achava que tinham que ser dita. Eu ouvia rap desde 82, achava foda, mas era tudo em inglês. Mas a primeira vez que eu ouvi música que me chamou pra ação, pra mudança, em português, foi o punk rock brasileiro. Inocentes, Cólera, Ratos de Porão, Garotos Podres… Aí é claro que teve a influência do Thaíde, dos Racionais, mas quando eu vi o Public Enemy, eu vi que tinham as duas coisas ali. Dava pra botar o dedo na ferida da história, falar de assuntos que normalmente não tinha em música e ao mesmo tempo era esteticamente agressivo. Mas se eu tô cantando uma parada num disco, é impossível eu não falar sobre injustiça social no Brasil ou sobre política. Às vezes eu até tento fazer algo que não tenha isso, mas não consigo, é até chato", ri.

Ele segue o discurso: "Educação e instrução são duas coisas diferentes. Tem a maior galera que tem instrução PhD, mas é arrogante, escrotão, não tem educação", explica, ressaltando a forma como as coisas vêm sendo abordadas atualmente: "A galera mais nova acha que tá vivendo a maior crise de todos os tempos, não é a maior crise de todos os tempos. Já teve milhões de crises, Brasil e crise sempre estiveram juntos, eu nasci na crise, passei anos, décadas de crise. Vai estudar um pouco."

Rádio e internet
E explica a indignação seletiva de 2015 ao apontar para outra ferida da corrupção brasileira: "Fica todo mundo reclamando de corrupção, mas o jabá não é uma corrupção foda? E isso vem fudendo a música brasileira há anos. A galera que só ouve rádio FM acha que só existem 10 pessoas fazendo música no Brasil e só. E ficam reclamando que não tem música boa hoje, que antigamente é que era bom. O Brasil tá vivendo um de seus momentos mais fodas, que não tá sendo refletido nas rádios FM, que deveriam ter a obrigação de refletir isso porque são concessões públicas. E são as mesmas rádios que estão aí reclamando da corrupção."

"A internet, por outro lado, é a razão da gente estar vivo", continua. "Se não tivesse a internet, eu ia seguir o caminho do Tom Zé antes do David Byrne encontrar ele. Ia trabalhar num posto de gasolina. Volta e meia quando eu encontro um fã de FM do Planet das antigas eu mando essa história, serião, e me divirto com isso, porque os caras sempre ficam com o olho arregalado. O cara tem cara de ouvinte de FM e me aborda falando que nunca mais me viu, me perguntando se eu parei de cantar depois do fim do Planet e eu digo que parei, que trabalho em posto de gasolina, que esse negócio de música não dá mais não. O cara fica apavorado, com o olho arregalado e eu ali sério, sem dar risada. Cacete, vai se informar! O cara só ouve o que empurram pra ele, que vida triste essa!"

"O rádio é o veículo que eu acho mais foda de todos", prossegue. "Melhor que TV, jornal… Quando é bem feito, como um programa do Maurício Valladares, da Patrícia Palumbo, em rádio aberta. É uma parada que muda a sua vida, porque você tem acesso a coisas que são propositivas, como era a rádio Fluminense. Não é algo te empurrado goela abaixo as coisas do mercado. E é o que me fez: eu sou cria do rádio. Se não tivesse a Rádio Fluminense (clássica rádio carioca no Rio de Janeiro, que abriu as portas pela primeira vez para toda a geração do rock dos anos 80, antes de eles terem gravados discos), eu tava fudido. Eu não tinha dinheiro, mal tinha dinheiro pra comer. Aí quando eu descobri a rádio, mudou tudo: ouvia Arrigo, Itamar, Beastie Boys, Sucidal Tendencies, Inocentes, Cólera, isso tudo tocando no rádio. Aquilo explodiu meu cérebro e é totalmente responsável pelo que eu faço hoje em dia. Imagina quantas pessoas não podiam melhorar por conta disso, porque cultura é uma parada importante, apesar de no Brasil não tratar de forma importante, é importante sim, pra caralho, faz parte do espírito do ser humano. Ajuda a tomar decisões de vida, a cultura faz toda diferença."

Turnê
O terceiro disco está prestes a ser lançado ao vivo com um show em São Paulo, no próximo dia 12 no Centro Cultural Rio Verde. É o início de uma turnê que começa em São Paulo e depois passa por Florianópolis (dia 18), Curitiba (dia 19), Londrina (dia 20) e continua em outubro em Salvador (dia 2) e Recife (dia 3) para finalmente continuar em novembro por Porto Alegre (dia 5), Brasília (dia 13), Belo Horizonte (dia 14) e Rio de Janeiro (dia 20). BNegão explica que fará os shows tocando apenas as músicas novas na mesma ordem do disco: "Aí só depois a gente toca os clássicos".

Embora TransmutAção tome conta da agenda da banda nos próximos anos, não será o único projeto que eles farão – e retomam o disco instrumental que pretendiam fazer esse ano no ano que vem. Pergunto qual instrumento o rapper toca nessa versão e ele desconversa: "Eu toco chocalho", diz rindo. "Tem música que eu toco guitarra, mas eu toco pouco guitarra, preciso malhar mais. Sou um percussionista que toca guitarra. Já fiz música pra caralho, tenho mais de quarenta músicas, mas tudo na intuição. Por exemplo, aquela pegada de trompete de 'Essa é Pra Tocar no Baile', eu que inventei aquela melodia, na cabeça."

Outros projetos ainda incluirão um disco de funk clássico, setentista. "Esse disco deve ter a nossa pegada em 'Funk Até o Caroço'. Como o funk 70, cruzão, é uma das espinhas dorsais e uma das coisas mais importantes do DNA dos Seletores, eu tinha essa ideia de fazer esse disco inteiro num estilo. E como a gente é uma banda mutante, de alquimista maluco, a gente toca várias coisas diferentes no mesmo disco. Mas eu tenho vontade de fazer um disco inteiro nessa pegada de funk sete zero – tanto as músicas que a gente já tocou quanto as que não entraram em disco nenhum." O rapper também promete o lançamento do primeiro DVD ao vivo até o final de 2016.

Em constante movimento – e constante mutação.

BNegão e os Seletores de Frequência
Lançamento do disco TransmutAção
Sábado, 12 de setembro de 2015, às 22h
Centro Cultural Rio Verde
Rua Belmiro Braga, 119 – Vila Madalena, São Paulo
Ingressos a R$ 30 (lote promocional)

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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