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"O Haiti é aqui": Emicida saúda Gil e Caetano em show consagrador

Alexandre Matias

22/08/2015 05h07

emicida-2015

Leandro Roque de Oliveira completou 30 anos no início desta semana e, como me disse antes de começarmos a gravar a entrevista que fiz com ele em vídeo, terminou uma série de "infernos astrais" ao coincidir o aniversário com o lançamento do segundo disco, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, que lança oficialmente este fim de semana com três shows no Sesc Pinheiros, em Sâo Paulo. Pois a sensação passada na primeira destas apresentações, na sexta, foi justamente a de Emicida concluiu bem a primeira fase.

A conclusão também é uma consagração – e esta está determinada até mesmo pela escolha do repertório. Se no grande show que fez antes da gravação do novo disco, há um ano, naquele mesmo teatro Paulo Autran, ele aproveitava para fazer uma retrospectiva da própria carreira e resgatava músicas que não cantava desde a década passada, no novo show só há músicas de seus dois discos, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, de 2013, e o recém lançado Sobre Crianças… Não há nenhum material das mixtapes que funcionaram como os primeiros degraus na carreira fonográfica do MC, mas isso não soa como renegação do passado nem rancor com músicas que possam ter perdido sua validade (mas só o tempo dirá). A escolha soa como afirmação do profissionalismo do rapper, como se, ao escolher músicas de seus dois álbuns de estúdio oficiais, estivesse batendo no peito para dizer que, sim, ele já tem uma discografia, uma carreira. Já passou da fase de fenômeno, de revelação, de novidade. Veio pra ficar.

As únicas exceções ao repertório são flertes com duas épocas distintas da músicas brasileira. A primeira é fruto da releitura que fez do primeiro disco do sambista Cartola no final de 2014 no evento 74 Rotações do site Radiola Urbana. "Preciso Me Encontrar" tem seu lado melancólico e solitário mas também conversa exatamente com o momento atual de Leandro, que "precisa se encontrar" em contato com a natureza, com a vida de fato, e não em livros, manifestos ou ideologias – a mesma visão idílica que fez o novo disco, gravado na África, soar mais contemplativo e reverencial do que propriamente combativo, como se esperava.

E não é que Emicida tenha baixado a guarda. Logo após cantar Cartola (e cantar de fato, não rimar a letra em cima de uma batida, mas cantarolar e entoar as notas da canção original), ele emenda sua saudação à Bahia na música "Baiana", que fez para cantar com Caetano Veloso. Como o show de lançamento do novo disco coincidiu com a época do show de 50 anos de carreira de Gil e de Caetano em São Paulo uma possível participação de Caetano no show era impossível, mas contornou a ausência invocando não só Caetano mas também Gil, fechando um ciclo aberto quando eles gravaram o rap "Haiti" no disco Tropicália 2, no começo dos anos 90. "Pense no Haiti, reze pelo Haiti", cantava o refrão, mais atual impossível ao apontar que o Haiti é aqui – fechando outro ciclo, este temático, que parte da forma como os brasileiros vêm tratando os refugiados haitianos no país para voltar ao principal tema do novo disco – e grande missão de Emicida – ao exigir que o racismo seja tratado como pauta urgente no Brasil.

Autossuficiente, Emicida também não chamou nenhuma participação especial – não teve Caetano e também não teve Vanessa da Mata em "Passarinhos" – e além da banda que já acompanha o rapper há anos (cada vez mais afiada) os únicos que subiram ao palco foram a própria mãe de Leandro, Dona Jacira, para falar o monólogo que encerra a primeira faixa do disco, batizada "Mãe", e a trupe de novos MCs que o rapper escalou para dividir vocais com ele na desconcertante "Mandume" – uma arrebatadora Drik Barbosa, o sinuoso Amiri, o sagaz Muzzike e o eminente Raphão Alaafin mostraram que a fonte do rap paulistano está longe de secar, cada um com seu estilo e rimas particulares.

Entre músicas do primeiro ("Levanta e Anda", "Bang!", "Gueto", "Hoje Cedo", "Zica, Vai Lá", "Triunfo", "Nóiz", "Ubuntu Fristili" e uma irresistível versão acústica para "Rinha (Já Ouviu Falar?)") e do segundo ("Madagascar", "Chapa", "Mufete", "8", "Boa Esperança", "Casa" e "Salve Black (Estilo Livre)"), Emicida passeia por sua curta discografia como se ela fosse composta por vários discos, fluente nas rimas como se tivesse décadas de experiência, lidando com o público e com o palco como se fosse seu único habitat, completamente desenvolto e seguro de si. Parava o show seja para criticar a pressa de alguém do público que berrou "Vai!" num momento de silêncio antes de uma música, quebrando o clima, ou para brincar com a banda na dancinha que fez os músicos todos virem para a frente do palco e balançar pra lá e pra cá. Entre comentários sérios, introspectivos ou divertidos sobre o novo disco e o momento atual do rap, do Brasil e da própria carreira, ainda declamou "Súplica", da poetisa moçambicana Noémia de Sousa, que se encaixou perfeitamente com o grande show de sexta:

Tirem-nos tudo,
Mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
Onde crescemos
E onde descobrimos pela primeira vez
Que o mundo é assim:
Um tabuleiro de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
A lua lírica do xingombela
Nas noites mulatas
Da selva moçambicana
(Essa lua que nos semeou no coração
A poesia que encontramos na vida)
Tirem-nos a palhota – a humilde cubata
Onde vivemos e amamos,
Tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
Tirem-nos o calor do lume
(Que nos é quase tudo)
– Mas não nos tirem a música!
Podem desterrar-nos,
Levar-nos
Para longe terras,
Vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos
À terra, do sol à lua e da lua ao sol,
Mas seremos sempre livres
Se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
Mesmo escravos, senhores seremos;
E mesmo mortos, viveremos,
E no nosso lamento escravo
Estará a terra onde nascemos,
A luz do nosso sol,
A lua dos xingombelas,
O calor do lume
A palhota que vivemos,
A machamba que nos dá o pão!
E tudo será novamente nosso,
Ainda que cadeias nos pés
E azorrague no dorso…
E o nosso queixume
Será uma libertação
Derramada em nosso canto!
– Por isso pedimos,
De joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
Mas não nos tirem a vida,
Não nos levem a música!

É fato: já não estamos mais assistindo à ascensão de um novo talento da música brasileira – Emicida já é um de seus principais nomes em atividade.

Sobre o Autor

Alexandre Matias cobre cultura, comportamento e tecnologia há mais de duas décadas e sua produção está centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br), desde 1995 (@trabalhosujo nas rede sociais). É curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra, do ciclo de debates Spotify Talks, colunista da revista Caros Amigos, e produtor da festa Noites Trabalho Sujo.

Sobre o Blog

A cultura do século 21 é muito mais ampla que a cultura pop, a vida digital ou o mercado de massas. Inclui comportamento, hypes, ciência, nostalgia e tecnologia traduzidos diariamente em livros, discos, sites, revistas, blogs, HQs, séries, filmes e programas de TV. Um lugar para discussões aprofundadas, paralelos entre diferentes áreas e velhos assuntos à tona, tudo ao mesmo tempo.

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